Somos um país que conta?
A sensação de não conseguir contar é terrível. A nação que não conta, não é respeitada como Estado efetivamente democrático ou sociedade minimamente civilizada. A contagem de população aparece como indício do elevado estágio de organização política de um povo. Romanos e chineses já faziam levantamentos populacionais em seus impérios. A palavra “census” vem do latim; quer dizer “conjunto de estatísticas”. Na jovem nação americana, uma das primeiras providências do presidente George Washington foi fazer a “ennumeration” da população residente nas 13 ex-colônias britânicas. Deu, então, 3.929.214 habitantes. Governantes totalitários não gostam de estatísticas porque elas põem a realidade social a nu. Ditadores manipulam a opinião pública com informações falsas, mantendo a imprecisão das bases estatísticas e geográficas do seu país.
Fazer um Censo no Brasil não é tarefa trivial. O último, de natureza agropecuária, visitou, um a um, os cerca de 5 milhões de estabelecimentos rurais do país entre outubro de 2017 e março de 2018. O questionário foi adaptado, mas sem cortes temáticos, de modo a ganhar agilidade em cada entrevista, cujo tempo de duração baixou de mais de duas horas, inicialmente previstas, para cerca de apenas 40 minutos. Com isso, foi conseguida uma economia de cerca de 50% sobre o orçamento inicial de R$1,6 bilhão. Mais do que isso, o Censo Agro 2017 ganhou em termos de precisão no levantamento e pôde ter seus resultados básicos divulgados poucos meses após realizado. O IBGE é uma referência internacional em matéria de Censos. A coleta, transmissão eletrônica e processamento das informações requer tecnologia de ponta e mapeamento preciso do espaço físico a ser recenseado. Pensem em visitar uma área rural às margens de um rio amazônico ou na fralda de uma montanha da Mantiqueira. Não é simples, e pode gerar um absoluto caos, se o levantamento for mal conduzido. O treino dos colaboradores de um Censo também é imperativo. Ter os equipamentos adequados para ir a campo é essencial e, depois, ter as centrais de computação compatíveis com a tarefa gigantesca.
Censo Populacional de 2020 é a próxima grande tarefa do Instituto criado por Mario Teixeira de Freitas, um baiano iluminado que convenceu Getúlio Vargas a fundar o IBGE em 1936. Desde então, este órgão impecável da administração federal tem prestado relevantes serviços de levantamento da nossa realidade, como produção nacional, inflação, emprego e renda, desemprego, saúde, educação, inovação, domicílios, saneamento, orçamento doméstico, pontos geográficos detalhados, altitudes de grande precisão, meio ambiente, gestão municipal, violência etc, sem cujos dados seríamos ainda mais prisioneiros do tremendo besteirol espalhado diariamente por burros falantes pelo país afora.
A atual equipe econômica falou por falar ao “exigir” que o próximo Censo 2020 seja mais econômico e trivial. Falou sem antes estudar nem refletir, como em geral acontece neste nosso país da absoluta improvisação. O Censo Agro de 2017, percorrendo o imenso território do país, após toda a economia realizada, custou R$800 milhões. O Censo populacional de 2020 será uma tarefa cerca de 8 vezes maior. Pela proporção, deveria custar uns R$6,4 bi. Mas só custará de metade a um terço disso. Serão visitados cerca de 70 milhões de domicílios, com dois questionários, um mais curto, para todos responderem, e outro, mais longo, para uma amostra de respondentes. Pensemos nas dificuldades práticas de acessar os mocambos, as favelas, as palafitas de beira de rio, as aldeias. Pensemos em comunidades remotas e em locais violentos ou de difícil acesso em grandes cidades. É bem diferente de fazer o Censo na Holanda ou na Dinamarca, países frequentemente citados por quem não entende nada do assunto, mas querendo desmerecer o Brasil como um desses países que ainda não evoluíram até o estágio de produção estatística “mais inteligente”. A estatística produzida hoje no país está entre as mais baratas, confiáveis e úteis do mundo, graças à alta qualidade técnica e dedicação extrema dos servidores do IBGE. O Censo 2020 nos EUA custará aos seus contribuintes cerca de 50 dólares por habitante enquanto, aqui, não chegará a 5 dólares por pessoa. O nosso IBGE sabe trabalhar ou não?
Perguntas essenciais ao questionário do Censo devem permanecer porque ali quase tudo é essencial. Razão não falta: o IBGE acompanha o “compliance” censitário da Comissão Estatística da ONU, cuja presidência coube recentemente ao Brasil. Além disso, há considerações de ordem social, como o grave tema da desocupação das pessoas ao nível municipal. E há perguntas para as políticas locais, como saúde. Os prefeitos de 5570 municípios dependem dessas respostas para planejar suas ações públicas e receber as verbas do FPM, Fundo de Participação dos Municípios, que distribui a arrecadação tributária do país pela contagem da população local. Seria imprudente e até temerário que grupos de trabalho externos, sem competência legal para tal, assumissem o papel do IBGE para determinar se esta ou aquela pergunta deve ficar ou ser excluída do Censo 2020.
Se o Censo for um fracasso, quem responderá pelos buracos nas estatísticas essenciais ao planejamento nacional? Não serão os palpiteiros mas sim, a atual presidente, dra. Susana Cordeiro Guerra, uma jovem e promissora profissional. Se bom conselho valer para ela, devemos seguir a lei de constituição do IBGE, que é clara sobre as responsabilidades da diretoria e não de qualquer consultor avulso. Mais do que isso, conviria seguir o que prescreve a OCDE: o IBGE deve se tornar parte integrante do chamado “núcleo de governo”, não apenas um apêndice do ministério da Economia. Num governo que planeja e que não esconde a realidade, os levantamentos censitários e geográficos serão cada vez mais fundamentais para as equipes que, de fato, projetem o futuro do país. Isso não acontece há pelo menos três décadas.
(*) Paulo Rabello de Castro é doutor em economia (Ph.D, 1975) pela Universidade de Chicago e presidiu o IBGE entre 2016 e 2017.