Omelete sem ovos
Fim de ano é tempo de fazer balanço do que passou e, entre uma rabanada e outra, pensar no que pode ser o ano de 2020. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump, ameaçado por processo de impeachment instaurado na Câmara, de maioria democrata, que espera derrubar no Senado com a maioria republicana, tirou duas semanas de férias desde sexta-feira, 21 de dezembro. No Brasil, não se sabe se o presidente Jair Bolsonaro vai fazer o mesmo. Seria bom dar uma trégua nas agressões e impropérios diários à imprensa postada ao seu ir e vir do Palácio da Alvorada (que considera revides legítimos!). De qualquer forma, no embalo do recesso do Judiciário (desde o dia 19 até 6 de janeiro) e do Congresso (de 23 a 1º de fevereiro), já autorizou férias de diversos ministros e auxiliares, entre eles o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Neste ano estressante de 2019, as semanas de Natal e Ano Novo deveriam servir para os brasileiros recarregarem suas baterias, renovar esperanças para um ano melhor em 2020, no tocante ao emprego, ao desempenho da economia (apesar do susto com o repique da inflação nos preços das carnes, ainda por influência da fome chinesa por proteína animal depois que a peste suína africana dizimou boa parte do rebanho que abastecia 40% do consumo de carnes do país) e fazer votos (nas eleições municipais, inclusive) para a melhoria substancial em segurança e indicadores sociais, como educação, saúde, saneamento básico e proteção ambiental.
O simples congraçamento das famílias, após as fraturas expostas das eleições de 2018, já seria o melhor presente de Papai Noel. Mas seria muito imaginar que no sábado boa parte dos brasileiros se juntaria aos 40 milhões de brasileiros para torcer fervorosamente pelo Flamengo contra os ingleses do Liverpool. A dificuldade de não rubro-negros aderirem à corrente pró Flamengo contra um adversário é diferente, mas não deixa de ser simbólica sobre o clima de divisão que persiste no país.
Um balanço do ano na economia mostra que os últimos indicadores são animadores. O principal deles foi a criação de 99 mil empregos formais em novembro (89 mil, descontando efeitos sazonais), no melhor resultado para o mês desde 2010. A criação ficou concentrada no setor de serviços (o mais importante da economia, pois responde por 73% do PIB), especialmente no comércio. A combinação da liberação concentrada do FGTS desde setembro com as promoções da Black Friday deu um empurrão na economia. O motor que não virava na chave como imaginava Paulo Guedes (de tão arriada que estava a bateria) pegou no tranco (com a liberação do FGTS) e pode ganhar velocidade em 2020. O carro já engatou a segunda (2% de velocidade no crescimento do PIB) e pode acelerar para a terceira (meta de 3%, para 2021). Mas está claro que o plano de voo do Posto Ipiranga não funcionou.
Ou era excesso de otimismo com as medidas fiscais (com a reforma da Previdência e as privatizações, PG [como o trato o presidente] imaginava “zerar o déficit no primeiro ano”. Ficou para o segundo e o terceiro, talvez. Ou falta de compreensão da dinâmica atual da economia brasileira, com grau de ociosidade (na capacidade de consumo, devido ao desemprego ainda elevadíssimo) humana muito superior à da capacidade instalada da indústria (75%) e dos setores de comércio e serviços.
A privatização não colocou nenhuma nova empresa na vitrine. O que andou foram as vendas de ativos da Petrobras – programadas desde o governo Dilma, quando a Lava Jato mostrou que o plano de investimentos da estatal, corroído pelo cupim da corrupção e do superfaturamento, era inviável com o patamar bem mais alto do dólar e o preço bem mais baixo do barril de petróleo (no Plano de Negócios e Gestão de 2015, previa-se dólar de R$ 3 e barril próximo de US$ 200 para 2019; o dólar está acima de R$ 4 e o barril abaixo de US$ 60). E imaginar que Bolsonaro, em mais um emprego de linguagem chula, incompatível com a majestade do cargo de presidente da República Federativa do Brasil, dizia que pretendia “dar uma f... por semana”, numa analogia sexual com o ritmo de uma privatização a cada semana. Deixo ao leitor a conclusão.
O que houve foram desmobilizações de estatais das carteiras dos bancos públicos. A Caixa Econômica Federal se desfez de 3,2% do capital votante da Petrobras. Levantou R$ 7,3 bilhões. O BNDES, além de se desfazer de parte das carteiras de ações de frigoríficos – fortemente apoiados nas gestões petistas, quando foram escolhidos como “campeões nacionais”, com créditos fartos e aportes de capital – na onda da alta da carne, anuncia que vai se desfazer da carteira de papéis da Petrobras. Justo quando a Petrobras, depois de limpar focos de perdas, com a privatização em massa, que será ampliada nas refinarias, passa a ser mais rentável. O controle da estatal ficará no mínimo de 51,2% das ações ordinárias (ONs). Considerando os papéis ONs e PNs, a maioria do capital ficará com os estrangeiros.
São muitas as questões que ficam para 2020. Deveremos ter embates sobre o avanço das privatizações, a começar pelo papel da Eletrobrás, que o governo quer transferir o controle por R$ 16/18 bilhões deixando de comparecer no aumento de capital programado para o ano que vem. Você leitor, que já jogou ou ainda gosta de uma mesa de pôquer, fugiria do pingo obrigatório numa rodada de fogo que tem uma fortuna em jogo na mesa? É, em síntese, o que o governo pretende: pedir mesa quando uma próxima assembleia for convocada e deixar que grupos privados (nacionais ou estrangeiros, incluindo estatais chinesas, francesas ou italianas) assumam o controle da empresa que gera 36% da energia elétrica do país.
Mas a questão mais complexa diz respeito à reforma tributária. A reforma da Previdência social, passou porque vinha sendo discutida abertamente há mais de duas décadas. Com o avanço da longevidade e as mudanças nos mecanismos do trabalho no Brasil, a “árvore de Natal Previdenciária” engordou em cima e tem menos gente para sustentar o modelo no futuro embaixo. Vale lembrar que isso ocorre em todo o mundo. Quando Getúlio Vargas criou a Previdência Social no país, limitou a idade de aposentaria a partir de 45 anos para as mulheres e de 55 anos para os homens. Mas a expectativa de vida de um país eminentemente rural era de menos de 60 anos. Hoje, está em 77 anos. Retirando as mortes prematuras (na infância e na juventude pela violência da criminalidade e do trânsito nas grandes cidades), a expectativa de vida supera os 80 anos, principalmente para as mulheres. Mudou muita coisa, mas tratamento diferencial foi garantido a militares das diversas categorias.
Todos concordam que a carga tributária brasileira é elevada e injusta. Tributa mais o consumo que o patrimônio. É uma herança de um país que foi criando impostos sobre bens e serviços que passaram a ser consumidos pelos ricos e moradores das grandes cidades (combustíveis, cigarro, bebidas, bens de consumo duráveis, como carros, motos e eletroeletrônicos, luz, gás, telefonia). À medida que novas camadas da população ingressaram no mercado de consumo [o ponto de partida foi a geada nos cafezais de São Paulo e Paraná, em 1975, que provocou forte migração do campo para as cidades e o ápice se deu no governo Lula, após a estabilização da economia no Plano Real de FHC, criar um horizonte de crédito de longo prazo para a compra de carros, móveis e eletrodomésticos, além da casa própria (com água, mas sem tratamento de esgoto), ampliou-se a base de tributação. Mas também de exigências da mesma sociedade quando a bons serviços sociais em troca dos impostos.
Mudar o complexo sistema tributário com a economia em movimento, seria o mesmo que um Fórmula 1 tentar mudar os pneus sem o pit stop. Em outras palavras, é preciso ter um bom plano de voo ao qual haja um consenso mínimo: taxar mais patrimônio e renda, desonerar mais o consumo de bens e serviços (o ICMS da telefonia e da luz anda na casa dos 30%, fora outros impostos federais). Mas o que uma reforma tributária tem de mirar é um horizonte longo. Para os próximos 30 anos, com um processo transitório e gradativo de adaptação de uns cinco a oito anos.
Não se pode desvestir um santo sem vestir outro. O setor público brasileiro está quebrado em todas as instâncias. Em parte, porque usa mal o dinheiro dos impostos. Gasta-se mais nos meios que nos fins, daí a revolta da população (e os políticos, em ano eleitoral logo empunham a bandeira) quando se fala em qualquer novo imposto, mesmo que um substitua cinco ou meia dúzia de tributos e taxas. O ministro da Economia tentou traçar um quadro futuro com transações financeiras à margem dos atuais sistemas tradicionais de transferências de fundos que transitam pelas instituições financeiras. Deu tanta grita quando o ex-secretário da Receita insinuou que impostos sobre movimentações financeiras abarcariam até as arrecadações de igrejas evangélicas. Mexeu com os currais eleitorais modernos, caiu...
A visão de Paulo Guedes está correta, no caso. Basta citar a autorização do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade, o órgão que regula a concorrência no mercado brasileiro) para que cinco gigantes mundiais do mercado de commodities (do agronegócio a petróleo e minérios, além de celulose, alumínio e aço) operem com o mecanismo de blockchain (formulação que deu origem às criptomoedas) nas suas transações financeiras. O quinteto é composto pelas norte-americanas ADM, Bunge e Cargill , que junto com a francesa Louis Dreyfus, fazem parte do chamado “ABCD” das grandes tradings de commodities, enquanto a Glencore tem sede na Suíça e a Cofco é uma estatal chinesa. No mercado brasileiro, as transações de grandes redes comerciais com novas fintechs (sistemas de pagamento oferecidos à margem do sistema bancário) tendem a movimentar uma massa crescente de recursos.
Assim como não se ingressa na “nova política” sem prescindir da “velha política” não há como fazer a transição da velha para a nova economia sem a criação de impostos ou enquadrar essas transações em alguma tributação. Não podemos fazer omelete sem quebrar ovos ou usar ovos. Negócios nas nuvens significam evasão fiscal. E menos recursos para atender as demandas da sociedade por assistência social de qualidade.