Foi bem na cabecinha
Afastado dia 27 de agosto, por 180 dias do cargo, pelo Superior Tribunal de Justiça, pelos escândalos na Secretaria Estadual de Saúde, durante a pandemia da Covid-19, poderia abordar várias razões para o ex-juiz Wilson Witzel, quase um ilustre desconhecido na política fluminense, ter sido eleito governador, em 2018, pelo obscuro PSC, derrotando político mais preparado e afeito à administração pública como o ex-prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), agora candidato a resgatar a Prefeitura da inépcia de Marcelo Crivella.
Com uma população estimada de 6,7 milhões pelo IBGE, a capital do estado concentra mais de um terço (38,7%) dos 17,3 milhões de fluminenses, segundo o IBGE, que projeta em 211,976 milhões a população brasileira. [calcula o IBGE que a população brasileira aumenta a cada 20 segundos, ou 4.320 pessoas em 24 horas, em uma semana seremos 212 milhões]. Esse era o cartel de Paes, que comandou a Prefeitura em dois mandatos.
Oficial de Marinha (1989 a 1992), Wilson Witzel formou-se em direito pela Faculdade Bennet e foi aprovado em 1997 para a Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Quatro anos depois, em 2001, foi aprovado em concurso para juiz federal na 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo), sendo alocado em Vitória como juiz criminal. De volta ao Rio, em 2010, passou a atuar em uma vara de execuções fiscais em São João de Meriti, quando condenou os responsáveis pelo “propinoduto” no governo Garotinho. Em 2012, foi transferido para a 1ª Turma Recursal e em 2013 eleito presidente das Turmas Recursais do RJ, onde atuou de 2014 a 2016. Em seguida, virou titular da 6ª Vara Federal Cível do RJ, até pedir exoneração em fevereiro de 2018, de olho na política.
Com apoio dos evangélicos e da família Bolsonaro, à frente o deputado estadual e candidato a senador Flávio Bolsonaro (PSL), Witzel surfou na onda da candidatura de Jair Bolsonaro, que teve no RJ 5,669 milhões de votos (67,95% dos votos válidos) no 2º turno. Witzel atraiu pouco menos de 900 mil dos votos do ex-deputado federal, ficando com 4,675 milhões de votos (59,87% dos votos válidos no 2º turno, contra 40,13% de Eduardo Paes).
Entre o desconhecido juiz, com o discurso da “lei e ordem”, materializada com a frase de que iria ordenar à PM para atirar “bem na cabecinha” de quem portasse um fuzil ou fizesse um refém (cumprida com espetacularização no caso do sequestro e morte de bandido em plena ponte Rio-Niterói, onde pousou de helicóptero para assessor filmar seu pulo de comemoração) e pelas acusações de que Paes era aliado de Sérgio Cabral, o eleitor preferiu o novo.
Particularmente, leitor, a mim, o juiz se mostrou completamente despreparado para administrar um estado complexo como o Rio de Janeiro, quando fizemos no JORNAL DO BRASIL rodadas de entrevistas com os dois candidatos ao 2º turno. Perguntei ao Juiz como reergueria a economia e a infraestrutura do Estado do Rio, em meio à falência financeira (o RJ estava sob recuperação fiscal desde o 3º trimestre de 2017) e a queda dos preços do petróleo [tudo piorou com a pandemia da Covid-19]. Ele respondeu que iria lançar mão da privatização de estradas vicinais e serviços.
Perguntei o que iria fazer em relação às obras de duplicação da Rio-Juiz de Fora, na Serra de Petrópolis, paralisadas desde 2017. Disse que também iria "privatizar”. Objetei que a rodovia, além de ser federal, já estava privatizada sob concessão. Mas ele emendou: “vou me entender com o presidente Bolsonaro para transferir a obra e a concessão para o Estado”. O resultado é que a obra segue parada e nenhuma estrada estadual (conheço várias que estão em completo abandono) foi a licitação pelo DER-RJ.
Explico porque digo que o Estado do Rio é complexo. Nenhum estado brasileiro (salvo o Distrito Federal) concentra na Região Metropolitana 2/3 de sua população. Isso agrava os problemas sociais e num estado que não conseguiu reagir nem com a tentativa da fusão do estado/cidade da Guanabara com o antigo Estado do Rio imposta pelo governo Geisel, em 1975, sem consulta à população dos dois lados da baía. O apoio federal não é mais do que obrigação para um estado que sempre foi o 2º arrecadador de impostos do país. Em nome disso, governos antagônicos como os de Collor e Brizola acertaram o repasse de verbas para a construção da Linha Vermelha. Já imaginou se não houvesse a alternativa à avenida Brasil para ligar o Rio à Baixada e algumas das principais estradas federais na região metropolitana?
O RJ jamais conseguiu reerguer sua agricultura desde o fim da escravidão, que pegou a cultura do café em exaustão no interior do estado, com a migração da produção para as ricas terras roxas de São Paulo e Paraná (hoje ocupadas por cana, laranja e soja, enquanto o café foi se refugiar das geadas no Sul de Minas e regiões mais quentes) e o debacle da produção de cana de açúcar no norte do Estado no fim dos anos 70 [até um século atrás, ainda segundo o IBGE, Campos dos Goytacases era um dos 10 mais populosos municípios do país e o Rio de Janeiro só perdeu a liderança para São Paulo em 1953].
Quando JK lançou o Plano de Metas, os empresários cariocas e fluminenses não se empenharam por atrair fábrica de automóveis para a região, que daria melhor uso às chapas de aço plano da CSN (em Volta Redonda). Isso só ocorreu a partir dos anos 90 com a Volks Caminhões e depois a Peugeot-Citroën em Resende e Porto Real. Em autocrítica para mim nos anos 80, o então presidente da Firjan, Arthur João Donato, lamentou que sua família (estaleiro Caneco) e a de Paulo Ferraz (estaleiro Mauá) foram lutar pela construção naval, que ganhou o reforço da japonesa Ishikawajima, que abandonou o barco no governo Itamar Franco, em 1994.
Perdemos na modernização do parque industrial brasileiro. A indústria de substituição de importações do RJ, de pequena escala, foi varrida do mapa na abertura da economia (redução de tarifas de importação) do governo Collor. Tínhamos o centro financeiro (mais as negociações de títulos públicos e privados no open market que a Bolsa de Valores). Empresários e políticos paulistas logo perceberem que não era possível manter a concentração industrial no ABCD (o crescimento urbano da Grande São Paulo comprometia a logística das fábricas na integração das cadeias produtivas) e trataram de atrair para a capital paulista o mercado financeiro (fortalecido anos antes pela criação da BM&F, ideia foi concebida pelo carioca Horácio de Mendonça Neto, um dos criadores do Ibmec, no qual o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, veio a iniciar sua carreira) bem como outras atividades de serviços.
O Rio ficou à mercê do turismo (esvaziado no turismo de negócios) e do petróleo. O escândalo do petrolão encobriu o esvaziamento de atividades ligadas ao petróleo, que enfrentava uma mudança em todo o mundo a partir da autosuficiência americana, alcançada em 2007 com o “shale gas”. Por sorte do Brasil, houve a descoberta do pré-sal em 2007, quando a Bacia de Campos, que garantiu a quase autosuficiência do país nos últimos 30 anos, entrou em decadência. Mas, fiados em estudos que apontavam que o barril estaria hoje na faixa de US$ 200-400, os governos Lula e Dilma sentaram em cima da riqueza e suspenderam os contratos de partilha. E puseram na cangalha da Petrobras uma série obras e projetos que não conseguiu suportar.
A crise financeira mundial de 2008 tornou aquela meta uma quimera (e esfumaçou as verbas para educação nos estados, prometidas por Dilma). A crise da Covid-19 derrubou o barril aos atuais US$ 45. Felizmente, a Petrobras consegue extrair hoje do pré-sal das bacias de Campos e Santos, principalmente, 67% do petróleo produzido com custos abaixo de US$ 8. Do contrário, estaríamos em sérios problemas. Essa queda do valor do petróleo abalou as finanças estaduais, dependentes das participações especiais.
Rompido com o clã Bolsonaro quando se lançou prematuramente, em meados de 2019, a candidato a presidente em 2022, os dois lados travaram uma luta surda de dossiês recíprocos. Enquanto o governador se valia dos inquéritos da Polícia Civil e do MP-RJ nos casos das rachadinhas de parte dos vencimentos de funcionários do gabinete do ex-deputado estadual na Alerj e atual senador, Flávio Bolsonaro, e seu assessor Fabrício Queiroz, e do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes por milicianos, o clã Bolsonaro jogou mais pesado a partir do momento em que tomou as rédeas da Polícia Federal e da Procuradoria Geral da República.
Um dos inquéritos contra desvios absurdos na Secretaria de Saúde do RJ levou a PGR a pedir a prisão do governador Wilson Witzel, após delação premiada do ex-secretário de Saúde, o capitão PM médico Edmar Santos. O governador Witzel foi dos mais diligentes quando a crise da Covid-19 chegou ao estado: decretou estado de emergência em 16 de março de 2020. Como dizem os chineses, o diagrama de crise também aponta para oportunidades.
Em vez de se empenhar pela testagem em massa para identificar e isolar os pontos de circulação do vírus, como denunciou o blog do jornalista Rubem Berta, em 9 de abril, a secretaria de Saúde tratou logo de fazer convênio de R$ 835,7 milhões com uma das organizações sociais que dominavam os contratos do órgão. A negociação conduzida pelo subsecretário executivo de Saúde, Gabriel Neves, previa a construção de nove hospitais de campanha. Dois na capital – Maracanã e Parque Olímpico, na Barra- e nos municípios de São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Campos dos Goytacazes e Casimiro de Abreu, pelo Instituto Social de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas). Por coincidência, tinha contrato com o escritório de advocacia da esposa do governador Witzel. O volume é bem menor que os fechados pelo escritório da advogada Adriana Anselmo nos governos do marido, Sérgio Cabral. Mas não é a dosimetria do desvio que determina o delito no CPP...
A maior parte sequer foi entregue. Muitas obras foram interrompidas porque ficariam prontas após o pique da pandemia. Uma comparação com custos e prazos dos hospitais de campanha montados e operados pela iniciativa privada é de envergonhar a quem votou no ex-juiz para governador (muitos votaram também em Pezão, Sérgio Cabral e no casal Garotinho, ou ainda mais longinquamente em Moreira Franco, em 1986). Todos deixaram a desejar, estão enredados com a Justiça em causas e motivos diferentes.
No caso do Estado do Rio de Janeiro, o quadro geral da Covid-19 não deixa dúvidas da incompetência da gestão, quando se comparam os números de doentes identificados e o total de mortos. (excluo Minas da comparação porque a pandemia agora é que está avançando nas Gerais). Estado mais populoso (46,3 milhões, segundo o IBGE), São Paulo teve até ontem de manhã 769,2 mil infectados e 29.694 mortes, uma incidência de 64,7 casos por mil notificações. O RJ, com 17,3 milhões de habitantes, só identificou 219,2 mil casos, mas o índice espantoso é de 15.859 mortes. A incidência de 91,9 casos por mil notificações indica que o vírus circula com muito maior intensidade que o governo do estado foi capaz de acompanhar com as prefeituras.
Vale comparar a situação do RJ com a do Ceará. O estado, de 9,2 milhões habitantes, tem 53% da população do Rio. Teve um forte surto inicial e identificou 212,4 mil casos (96% do total do RJ). Mesmo registrando um alto nível de mortes para a população (8.376 ou 52,8% das mortes do RJ) a incidência de casos fatais por cada mil notificações foi de 91,7%, menor que a do Rio. Em busca de oportunidades na crise, Witzel mirou alto, mas foi abatido com um tiro certeiro bem na cabecinha na primeira prévia de 2022.