Suprema felicidade

Por CAL GOMES

Nelson Motta

Vinte e dois anos se passaram desde que estive pela primeira vez com Nelson Motta. As névoas do tempo não impediram que a minha memória localizasse alguns detalhes daquele encontro ocorrido em um amplo apartamento de frente para o mar de Ipanema. Claro que a data precisa não me lembro, mas de uma tarde de sol do início de uma primavera bem típica carioca, sim. Quente. Sem nenhum resquício de inverno, que, vamos combinar, nunca afastou os cariocas da praia, do ar-condicionado e do ventilador.

Acompanhado pela amiga Angie Diniz, e pelo mano Marcoz Gomez autor dessa foto que ilustra a coluna, fui recebido por Nelson para uma entrevista, e não é nem preciso estar com as lembranças turbinadas para sentenciar que, na época, ele trajava jeans, uma camiseta preta de malha e um largo sorriso. Suas marcas registradas. Os óculos escuros inseparáveis, claro, óbvio, também apareceram no nosso papo, quando a claridade da luz atravessando a janela do escritório começou a incomodá-lo.

As duas horas que passei com Nelson Motta, no início desse século que já se apresentava intenso e veloz além de confirmarem o que eu vivia lendo e ouvindo sobre o jornalista muito bem informado, o escritor talentoso, o homem culto, espirituoso, nascido em São Paulo, mas carioquíssimo de corpo, alma, espírito e coração, cidadão urbano do mundo, reforçarem o que sempre imaginei que ele fosse: o cara mais feliz que nasceu nesse Brasil tropical abençoado sei lá por quem. Só mesmo uma pessoa que está de muito bem com a vida pode confessar, como fez nesse encontro, entre gargalhadas, que um dia um ladrão "gente fina" invadiu o seu apartamento enquanto ele descansava:

- Mas foi ótimo! Até ajudei a escolher alguns cds para ele levar!

A origem da percepção que tenho de uma felicidade plena que domina o perfil de Nelson Motta talvez as minhas recordações afetivas resgataram voltando a 1974, quando eu ainda era um menino, sentado no sofá em uma minúscula sala, de uma modesta casa de vila do Andaraí, de frente para a TV preto e branco que se equilibrava com os seus pés de palitos no assoalho perfumado de tacos recém encerado. O jovem Nelson Motta, cabeludo, falante, sorridente, apareceu pela primeira vez para mim no curvilíneo e robusto tubo de imagem como apresentador da estreia do programa Sábado Som, naquela tarde que seria a do meu batismo no mundo mágico do Rock and Roll: um show sem plateia da banda Pink Floyd sob o sol quente, sobre o chão de terra e entre os destroços de um anfiteatro nas ruínas históricas da cidade de Pompeia, no sul da Itália. De lá para cá, sempre que ele apareceu para mim se apresentava feliz. Seja na mídia ou nos esbarrões fortuitos nas calçadas, cafés, livrarias, da minha querida Ipanema, quando éramos vizinhos de bairro e ele estava de volta ao país.

O início da trajetória profissional de Nelson Motta nos anos de 1960, em um Brasil começando a enfrentar a ditadura civil-militar, se mistura com a chegada da Bossa Nova minimalista de João Gilberto, a Jovem Guarda popularesca de Roberto Carlos, o Tropicalismo efervescente de Caetano e Gil, o Rock colorido e escrachado dos Mutantes.

Os seus olhos e ouvidos de jornalista captavam todo aquele movimento renascentista tupiniquim, mas que seu temperamento não permitiu que fosse um mero narrador dos fatos e versões de uma nova era cultural comportamental que se iniciava. Seu espírito inquieto e curioso o colocou nas cenas artísticas que se espalhavam pelo país de forma avassaladora. Sem ser músico, sem ser cantor, sem gravar discos, sem fazer shows, Nelson foi surgindo em um raro processo, para a época, de precoce protagonismo no meio musical carioca. Entre romances, amizades e parcerias, ainda muito moço, cercado da mais pura nata artística, foi se transformando em referência como empresário, produtor e compositor.

Perto de se tornar um octogenário este ano, mais precisamente em outubro, Nelson Motta faz parecer, nitidamente, que aquele jovem dos longínquos anos 60 que desaguaram nos barras pesadas 70s, inundando os 80s que abasteceram o país de democracia após 21 anos sob coturnos, ainda se faz presente por aqui firme e forte. Suas aparições na mídia em entrevistas, depoimentos, em sua coluna no jornal, nos posts em redes sociais, mostram o dinamismo de sempre. Diferente da mensagem conformista da canção Como Uma Onda, de 1983, estrondoso sucesso de Lulu Santos, do qual ele colaborou com a letra que se auto definiu Zen-surfista, narrando os vais e vens da vida, dos sobes e desces, dos inícios e fins infinitos.

Tudo sempre vai passar, é verdade, menos a felicidade de Nelson Motta que continua sendo, pelo menos para mim, o homem mais feliz do Brasil.