CULT, POP & ROCK
Guardando Marina Lima
Publicado em 13/06/2024 às 19:49
Alterado em 13/06/2024 às 19:49
Quase no fim da manhã de terça-feira, enquanto quebrava a cabeça para descobrir como iniciar esta crônica, farelos de raios de sol aproveitaram uma fresta deixada pela cortina distraída e alcançaram o quarto andar da estante que fica ao lado de minha mesa de trabalho, iluminando um pequeno veleiro de madeira e meia dúzia de livros ao seu lado que se escoram uns aos outros. Espremido entre clássicos dos mestres Zuenir Ventura, Ernest Hemingway, Jack Kerouac e Millôr Fernandes, Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, uma seleção do crítico literário Ítalo Moriconi, lançado em 2001, voltou a chamar a
minha atenção depois de anos.
Uma ajuda providencial, tipo sincronicidade junguiana, ou metafísica, se preferirem, veio me socorrer para que eu tivesse o click de inspiração que, quase dramaticamente, suplicava para iniciar a minha coluna deste final da segunda quinzena de junho. Me lembrei, imediatamente, de Guardar, o centésimo e, portanto, último, mas não menos importante, poema escrito pelo poeta e filósofo carioca Antônio Cícero e publicado nesta seleção organizada por Ítalo. E é com as suas primeiras linhas que começo a escrever um pouco sobre a sua irmã, amiga, confidente e parceira em brilhantes canções: Marina Lima ou, simplesmente, Marina.
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la, ou ser por ela
iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar
acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
A decisão de escolher Marina para a coluna de hoje veio como sugestão do mano Marcoz Gomez na última quarta-feira de maio, na estrada que nos levava a Marataízes para tentar resolver uma chatice burocrática. Correndo contra o relógio no início da manhã nebulosa, enquanto músicas tocavam aleatoriamente no interior do mini cooper ágil e veloz, deslizamos pelo espaço-tempo tagarelando sobre o asfalto molhado e ricocheteando por quebra-molas intrusos. E durante a metade final do trajeto até chegar à cidade praiana do Espírito Santo que, durante os anos 80, foi o principal abrigo nas minhas longas e incandescentes férias juvenis de verão, me calei.
Naquele silêncio que me impus, fui pensando em Marina Lima, nas suas canções, nos seguidos sucessos que, já naqueles anos, faziam parte da minha trilha sonora diária, tocando nas FMs, nos alto falantes do pátio da faculdade, nos largos corredores dos Rios Sul da vida, no velho toca discos do quarto acanhado e abafado, nas fitas K7 durante acampamentos esfumaçados e desconfortáveis. Alguns detalhes da vida da mulher, cantora, compositora, instrumentista, eu já conhecia, sem precisar fuxicar na internet atrás de maiores informações, o que acabei fazendo, na última semana, para ter mais elementos para ilustrar a coluna. Navegando de um lado para o outro, quase que perdido no oceano infinito da web, encontrei uma quantidade imensa de material sobre a cantora.
Vídeos antigos com algumas entrevistas de Marina me ajudaram a ter uma melhor percepção pessoal e uma visão artística e profissional mais ampla sobre a carioca, filha de piauienses, que viveu boa parte da sua infância e adolescência nos EUA nos anos 60 e 70 até retornar, de vez, ao Brasil onde iniciou sua carreira de sucesso, atingindo o clímax no álbum Fullgás, lançado em 1984. E que começo a ouvir agora enquanto escrevo dedilhando o teclado do notebook tentando acompanhar a voz charmosa da cantora e
seguindo os fraseados do baixo do genial Liminha por toda a canção título, inspirados em Billie Jean, de Michael Jackson, como ela confessou, empolgada, a Charles Gavin, no ótimo Som do Vinil, exibido no Canal Brasil, anos atrás, e que revi no último domingo.
O problema com a voz, a perda dos pais, de um dos irmãos, contribuíram para os planos de trocar a ensolarada Rio pela cinzenta, e que nunca dorme São Paulo, em 2011. Continuar vivendo na cidade que sempre amou, segundo a cantora em uma entrevista à jornalista Marília Gabriela, logo após a mudança, não iria ajudá-la a resolver questões emocionais que não cessavam e cresciam, principalmente, após as perdas de familiares que faziam parte de seu núcleo afetivo fechado e consolidado.
Em uma nova cidade, em uma nova casa, com novos amigos e parceiros, Marina foi se fortalecendo, refazendo a sua carreira, buscando outras sonoridades, produzindo como antes, em um auto-conhecimento que buscou nos últimos anos em que viveu na sua cidade natal e não conseguiu. A reconstrução na vida pessoal e artística foi sendo realizada aos poucos, mas que, simbolicamente, se iniciou quando, logo nos primeiros dias de sua nova casa, pegou o violão e compôs SP Feelings, a sua primeira declaração de amor a São Paulo, que está no seu álbum Clímax, e que, talvez, tenha despertado ciúmes inofensivos aos seus milhares de fãs cariocas inconsolados.
Nesta mais de uma década em que resolveu mudar de ares e se reinventar, Marina nunca parou de se expressar. Artista inquieta e mulher corajosa, usa sua voz e imagem também para se manifestar política e ideologicamente. Fala de sua sexualidade naturalmente, enfrenta os reacionários de plantão com a mesma energia que sobe aos palcos para apresentar a sua arte.
E em 30 de junho, no último domingo do mês, essa virginiana convicta e botafoguense apaixonada, estará de volta ao Rio, mais precisamente nas areias da sua saudosa Ipanema para presentear os cariocas com mais um daqueles shows memoráveis que sempre realizou durante anos na cidade. E como comecei a crônica para a coluna, a termino retornando e repetindo um trecho do poema de Antônio Cícero.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la, ou ser por ela iluminado.
E eu continuo guardando Marina Lima. Sempre. Para sempre.