Cult, Pop & Rock

Por CAL GOMES

CULT, POP & ROCK

Dudu e Eu

Publicado em 11/07/2024 às 20:52

Alterado em 11/07/2024 às 20:52

. Foto: Cal Gomes

'Não escrevo como falo, não falo como penso, não penso como deveria pensar. E assim por diante até as mais profundas trevas.'
                                                                                                                Franz Kafka

 


Um gavião silencioso flutuava em círculos no céu azul turquesa que envolvia o sítio na tarde da primeira terça-feira de julho. Mais no alto, uma pequena nuvem se desmanchava como sorvete ao sol. Mais acima, muito acima, um avião deslizava deixando um rastro branco que se desfazia, lentamente, pelo horizonte.
Um bem-te-vi solitário, pousado em uma árvore ressecada pelo rigor do inverno e do tempo, ecoava o seu canto entristecido como um longo suspiro de um jovem apaixonado se despedindo da primeira namorada.

Eu, sentado na ponte arcada de concreto que se sobrepõe ao longo riacho que corta toda a região, peneirava pensamentos e filtrava lembranças ouvindo, nos fones, Way to Blue, coletânea que envolve os três primeiros e únicos álbuns da curta carreira do músico inglês de folk, Nick Drake.

A mesma ponte que nos últimos anos suportou a força descomunal das águas, provocada pelas inúmeras enchentes, parecia que iria desabar com o peso das toneladas da minha imensa tristeza. Dudu, o cão vigia aqui do sítio, meu fiel e protetor companheiro, havia partido na noite anterior, longe de mim, carregado pelo tumor que enfrentou, bravamente, durante os últimos 11 meses, me deixando ainda mais sozinho no vazio dessa fortaleza verde.

A escolha de colocar para tocar as canções outonais melancólicas de Nick Drake em um fim de tarde, de um dia tão dilaceradamente triste, foi proposital. Eu tentava levar ao extremo toda aquela dor do meu coração fraturado pela morte do meu amigo. Como se tentasse expelir à força um incômodo espinho escondido, inalcançável, sob a pele.

Eu sabia que além da doença, o peso dos 15 anos já afetava impiedosamente Dudu, mesmo que, no dia a dia, o seu latido alto e forte, a sua robusta massa muscular, o seu apetite inabalável, a forma carinhosa com que se apresentava não só a mim, mas a vários famïliares e amigos, me davam um sentimento confortável, uma esperança, mesmo que pálida, de que ficaria mais alguns anos ao meu lado, reinando absoluto nas noites e madrugadas aqui do sítio, me protegendo, orgulhoso, como um sentinela incansável, enquanto eu dormia tranquilo e despreocupado.

Enquanto Nick Drake preenchia os meus ouvidos com a sua voz macia, morna, interpretando suas delicadas canções, destilando lirismo e melancolia, a tarde começava a se despedir com o sol se camuflando por entre a folhagem prateada de um gigante eucalipto.

Neste momento, a lembrança de uma outra tarde semelhante surgiu, talvez também de início de inverno, quando, na mesma ponte, Dudu sentou-se ao meu lado e, curioso, me acompanhou fitando, com seus luminosos olhos castanhos, os raios do sol que conseguiam se livrar dos galhos e das folhas do eucalipto. E me recordo que ficamos ali por alguns longos minutos, tingidos de dourado pelo sol que, lentamente, descia para o seu descanso diário.

Em seguida, naquela tarde, das muitas que passamos juntos, e que na minha memória agora retornou, me levantei e voltei para casa à procura de abrigo e repouso. Dudu, na sua infinita alegria canina, correu veloz pelo vasto e espesso gramado até alcançar a parte mais alta do sítio para dar início a sua rotineira e impecável tarefa de vigília e proteção. Parte mais alta onde agora ele repousa em um cantinho ao lado de uma mangueira.

Hoje, dias após o meu querido amigo ter se afastado de mim, enquanto escrevo, trêmulo e emocionado, este texto, contemplo as últimas fotos que tirei dele quando, quase como uma despedida, abandonando a clínica veterinária, retornou para estar aqui comigo, no último fim de semana que passamos juntos, olhando, mais uma vez, o sol, lentamente, se pondo por entre nuvens, eucaliptos e pinheiros.

E finalizo essa homenagem ao meu querido e fiel amigo citando um trecho da bela Time of no Reply, do Nick Drake, que ouço agora não conseguindo segurar as lágrimas.


'O tempo passa de ano para ano
E ninguém pergunta porque estou esperando aqui
Mas eu tenho as minhas respostas olhando para o céu'

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