CULT, POP & ROCK
De Costa a costa
Publicado em 22/08/2024 às 11:50
Alterado em 22/08/2024 às 11:50
Costumo dormir por volta das 23h e me levantar, invariavelmente, às 06h. No entanto, no domingo passado foi diferente. Um longo documentário sobre OVNIS me fez apagar lá pelas 3 da madrugada. Resultado: acordei, assustado, às 08h, com Ludowica, minha felina de estimação, subindo nas minhas costas e suplicando por ração.
Trinta minutos depois, ainda tonto de sono, com uma caneca de café nas mãos e sentado ao sol em frente ao meu chalé, tentava despertar à força ouvindo música alta com auxílio de Glenn Hughes, vocalista e baixista que, durante os anos de 1970, fez parte da banda inglesa de Hard Rock, Deep Purple. Injetei no CD Player “Burning Japan Live”, espetacular álbum ao vivo do inglês que, há vários anos, virou um cidadão californiano, fixando residência em Los Angeles.
Glenn faz parte da minha longa seleção de heróis da música. Baixista de grande técnica e vocal de potentes graves e agudos, de grande alcance, que lembram cantores do R&B americano, como Stevie Wonder e Marvin Gaye, que o influenciaram fortemente, passou momentos muito complicados assim que o sucesso começou a surgir, logo que estreou no Purple com o espetacular álbum “Burn”, lançado em 1974.
Aprisionado pela fama e destroçado pelas drogas, que quase o levaram à morte, o músico só começou a se reerguer no final dos anos de 1990. Toda a vida de Glenn, sua trajetória musical e na vida pessoal, sua luta para se livrar dos vícios, estão detalhadas em “Glenn Hughes - A Autobiografia”, de 2018, e lançada no Brasil.
Conheço o ótimo “Burning Japan Live” de cor e salteado, de trás para frente. Perdi as contas da quantidade de vezes que o ouvi desde que o comprei, no início dos anos 2000. São 15 petardos que vão desde os sucessos do Purple e do Trapeze, sua primeira banda, passando por algumas maravilhas da sua carreira solo até 1993, data da gravação dos shows que se transformaram nesse impactante disco ao vivo.
E quando “Coast to Coast”, a oitava na sequência, gravada originalmente em 1972, no cultuado álbum do Trapeze “You Are The Music... We"re Just the Band”, e a preferida dos muitos dos seus milhares de fãs, começou a tocar nas caixas, na manhã de domingo, talvez induzido pelo início da curta letra em que Glenn narra um passeio de carro por uma estrada na costa de uma cidade praiana, durante alguns minutos, me vieram à mente a orla do Rio e várias lembranças de épocas, momentos, lugares, pessoas, e canções que marcaram períodos da minha vida desde que cheguei na cidade, na primavera de 1970.
E aqui está uma lista do que fui me lembrando naquela manhã sonolenta e preguiçosa:
1. “Reflections of my Life”, The Marmalade. Em outubro de 1970 eu era muito menino para hoje ainda conseguir me lembrar se era mesmo essa canção que tocava no rádio do Aero Willys preto de um tio quando eu, minha mãe e irmãos, sentados no banco de trás, de mudança do interior do Espírito Santo para o Rio, atravessamos a Baía de Guanabara, ainda sem a Ponte Rio-Niterói, flutuando em uma balsa em uma tarde ensolarada de primavera.
Mas sempre que ouço essa triste canção narrando o lamento de um soldado americano nos campos de batalha do Vietnã, me recordo dessa nossa chegada à cidade.
2. “My Sweet Lord”, George Harrison. Nos primeiros meses no Rio, minha família ficou hospedada provisoriamente no apartamento de minha avó Maria, em um edifício na rua Paula Brito, no Andaraí. Quando ouço essa obra prima do George, logo me vem à memória a casa da minha querida Vó Maria e, especificamente, o quarto das minhas tias, adolescentes na época, cheio de posters nas paredes, cadernos e livros escolares espalhados pelas camas e delas cantando e tocando violão.
3. “A Whiter Shade of Pale”, Procol Harum. Outra que me faz lembrar os meses em que fiquei na casa da minha avó. Anos depois, quando ela foi passar uns dias em minha casa em Petrópolis, coloquei para tocar o vinil com essa maravilha recheada de acordes bachianos. Logo em seguida notei que Vó Maria estava chorando. O motivo: a canção a fez recordar do Vô Paganote e dos anos em que morou naquele apartamento do Andaraí.
4. “Impossível Acreditar que Perdi Você”, Márcio Greyck. Canção popular romântica que fez muito sucesso no Brasil quando foi lançada em 1971. Me lembro dela tocando no rádio, minha mãe trabalhando na máquina de costura, cantando junto, e eu sentado ao lado, no chão, brincando com o meu Forte Apache.
5. Construção, Chico Buarque. Me faz lembrar de meu querido pai, seu Zé Carlos, a obra prima do Chico tocando no rádio, por volta de 1972, em nossa casa de vila, na Rua Ferreira Pontes, no Andaraí. Barbeando-se bem cedo, sentado no sofá da sala, calçando seus sapatos antes de ir para o trabalho na sua fábrica de móveis, em São Cristóvão. Quando retornava, no fim da tarde, me trazia gibis da Disney e da Marvel.
6. “O Show Já Terminou”, Roberto Carlos. Passei 5 meses de 1973 internado no hospital Miguel Couto para ser submetido a uma cirurgia complicada. Minha mãe ficou o tempo todo ao meu lado. E esse sucesso do Roberto, que tocava sempre no rádio de pilha que ficava na mesa de cabeceira, me faz voltar aquela época. E sempre que vou visitar a mãezinha, que está com a memória e saúde fragilizadas, cantamos juntos. Emocionados. E ela nunca se esquece da letra, da melodia e, claro, daqueles dias.
7. “So Very Hard To Go”, Tower of Power. Baladão soul que estourou no Brasil quando foi lançado em 1973. Me faz lembrar os dias de fisioterapia, em 1974, no Miguel Couto, quando, antes de voltar para casa, no fim da manhã, dava uma passada no clube do Flamengo, ao lado do hospital. Me recordo dos jogadores cabeludos chegando para os treinos, com o som dos carros muito alto, às vezes tocando esse sucesso da época. E sempre faço questão de citar, orgulhoso, que fiz uma pequena amizade com o simpático argentino Doval, que chegava de moto, me chamava de "branquito" e me pagava Kibons.
8. “Charlie Brown”, Benito di Paula. Sucesso estrondoso de 1974 que me faz recordar os domingos cheios de luz, cores e maravilhosos no velho e incrível Maracanã. Lembro que antes dos jogos começarem, Charlie Brown, tocando nos pequenos rádios de pilhas, ecoava por todo o estádio. E me lembro agora de Tio Dorinho, rubro negro fanático que nos deixou na semana passada, indo comigo e com o meu pai aos jogos. Subíamos juntos a rampa em frente à estátua do Bellini, mas na hora de entrarmos, ele seguia para o lado da torcida rubro negra, e eu e meu pai para o outro, a da do Vasco.
9. “Tomorrow Dreams”, Black Sabbath. Rock pesado que abre o álbum “VOL. 4” da banda inglesa, o primeiro disco que tive na vida. E sempre que a ouço volto à década de 1970, para a vila de casas geminadas do Andaraí, e dos meus amiguinhos da vizinhança. Dividiamos muitas brincadeiras de pique, futebol nas ruas, álbuns de figurinhas, bolas de gude, ping pong, WAR, pipas...
10. “Ovelha Negra”, Rita Lee. O maior sucesso de Rita me transporta para o caminho de ida da minha casa, na Ferreira Pontes, até a escola Panamá, na rua Duquesa de Bragança, no Grajaú. Enquanto eu caminhava, ouvia a canção que tocava em várias casas sintonizadas na rádio Mundial, fazendo o mitológico solo de guitarra de Luis Sérgio Carlini ecoar pelas ruas do bairro. Hoje sei que por aquelas calçadas das ruas do meu trajeto também caminhou Stuart Angel, militante da esquerda, que, na clandestinidade, lutou bravamente contra a ditadura e se escondia em um "aparelho" no Grajaú. Em 1971 foi emboscado e preso em uma praça de Vila Isabel. Depois, torturado e morto por militares na Base Aérea do Galeão.
11. “Um Certo Alguém”, Lulu Santos. Me faz lembrar da praça de alimentação do Rio Sul. A canção do Lulu sempre tocava no sistema de som quando eu frequentava o shopping, normalmente aos sábados, na metade dos anos 1980. No início da noite, eu pegava um ônibus no Lins, onde morava na época, com dinheiro contado, e partia para o Rio Sul, esperando que uma menina que eu me interessava, que morava na Morada do Sol, condomínio de prédios que fica em frente ao shopping, aparecesse para que eu a convidasse para uma Coca-Cola e um hamburger. Ela nunca apareceu.
12. “Certas Coisas”, Lulu Santos. Mais uma do cantor, que entrevistei em 1986 em seu apartamento no Jardim Botânico. Sempre que ouço essa maravilha, uma das minhas preferidas do Lulu, me lembro do nosso papo na sala, acompanhados pela Scarlet Moon, sua mulher na época. Recordo bem que em certo momento ele pegou o violão de braço duplo que aparece no clipe da canção me dizendo que não conseguia afiná-lo. Que servia só como decoração, mas que resolveu usar na gravação do vídeo.
13. “Love Theme”, Vangelis. Trilha sonora do filme “Blade Runner: caçador de andróides”. Me faz, nas lembranças daquela época, revisitar o pátio da FACHA, em Botafogo, faculdade em que cursei jornalismo e fui muito feliz durante 5 anos na década de 1980. Na ocasião, eu e alguns colegas reabrimos o Cineclube que foi fechado pela ditadura nos anos 1970. O filme de Ridley Scott foi escolhido por nós para a reestreia. Uma fila imensa se formou para assistir ao cult movie. Um sucesso.
14. “Declare Guerra”, Barão Vermelho. Bati um longo papo com Roberto Frejat em um apartamento do bairro Flamengo quando ele se preparava para lançar “Declare Guerra”, o álbum do Barão que foi gravado após a saída do Cazuza. Nunca me esqueci desse encontro. Assim que nos despedimos, Frejat me convidou para que aparecesse, no dia seguinte, ao ensaio da banda em um porão de uma velha casa nas Laranjeiras. Foi uma experiência maravilhosa. Também me convidou para ir ao show de lançamento do álbum no Circo Voador, que foi realizado na semana seguinte.
15. “Vida Louca Vida”, Lobão. Assim que saiu da prisão, em 1987, o músico fez um ótimo show no Canecão para o lançamento do seu álbum “Vida Bandida”. E eu estive lá. E também apareci no seu camarim assim que a sonzeira terminou. Na época, Lobão era outra pessoa. Polêmico, mas bem diferente desse personagem de hoje. Batemos um papo rápido enquanto ele mostrava o braço protegido pelo gesso, que não o atrapalhou no manuseio da guitarra e nas porradas na bateria. Eu tinha uma foto engraçada desse nosso encontro, mas a enchente de final de março, levou.
16. “Sonífera Ilha”, Titãs. Estive no primeiro show da banda no Rio, quando ela ainda se chamava Titãs do Iê-Iê-Iê. Foi em 1983, no Circo Voador, antes do lançamento do seu álbum de estreia, em 1984. Foi uma noite estranha, marcada por muitas vaias aos caras. Afinal, o público era de uma galera que tinha ido assistir grupos nacionais de Hard Rock e Celso Blues Boy, que fechava a noite. Sempre que ouço “Sonífera Ilha”, as imagens daquela apresentação surgem na memória. Uma dezena de músicos esquisitos pulando e berrando no palco. Os anos se passaram e a banda paulista se transformou em uma das preferidas dos cariocas.
17. “Completamente Blue”, Cazuza. No início dos anos 2000, comecei um projeto de uma revista cultural para Ipanema. A Azul, que, infelizmente, não foi em frente. Para a primeira edição convidei o produtor Ezequiel Neves, um dos grandes personagens do cenário de produção musical nos anos 1980 e 1990, para ser um dos colunistas da revista Em um dos muitos encontros formais e informais que tivemos, no Manoel & Juaquim, meu bar e restaurante preferido de Ipanema, passamos longas horas bebendo e falando sobre o Cazuza. E quando ouço essa maravilha, me recordo daquela tarde que começou em Ipanema e terminou na noite do Leblon. Viva Zeca Jagger! Viva Cazuza!
18. “Devolva-me”, Adriana Calcanhoto. Entre 2002 e 2004, tive um relacionamento tranquilo com uma garota muito bacana, mas que, infelizmente, não foi para frente porque eu não estava querendo me envolver muito. Na época, ela me deu uma coletânea da Adriana Calcanhoto, que eu invariavelmente colocava para tocar sempre aos sábados quando tomávamos café da manhã. Assim que terminamos, ela se mudou para Teresópolis e deixou para trás, no meu apartamento, alguns objetos pessoais. Nunca voltou para pegá-los de volta. Quando ouço essa regravação de Adriana para um grande sucesso dos anos 1960, da dupla da Jovem Guarda Leno & Lilian, me lembro, com carinho, daquelas calmas e doces manhãs com ela.
19. “Quem de Nós Dois”, Ana Carolina. Morei durante dois anos na Nascimento Silva, em Ipanema, de 1999 a 2001. Certa vez, quando voltava pra casa em uma tarde quente de verão, parei para sentar na calçada em frente ao meu prédio para conversar com uma vizinha adolescente. Ela estava tocando, em um belo violão Ovation, essa canção italiana que Ana Carolina regravou. Marcela, essa menina, me confessou que estava tentando aprender a tocá-la para mostrar a um garoto da escola que estava paquerando. Nunca me esqueci desta tarde e, especialmente, gosto das partes da letra da canção que dizem: "No vão das coisas que a gente disse" e "Que a estrada sem você é mais segura."
20. “Preta Pretinha”, Novos Baianos. Essa obra-prima me faz lembrar da amiga Helô, das cervejas, dos Jack Daniels e das comidinhas árabes na ampla varanda do seu apartamento do Jardim Oceânico, com uma vista magnífica para a Pedra da Gávea. As tardes dos fins de semana que passei lá com ela, durante vários anos a partir de 2008, conversando, bebendo, rindo muito das bobagens do dia-a-dia, eram maravilhosas. E Helô sempre colocava esse enorme sucesso dos Novos Baianos para abrir os trabalhos.
21. “Kashmir”, Led Zeppelin. Sempre que a Black Dog, ótima banda cover do Led, se apresentava no Rio Rock Blues Club, casa noturna na Lapa, no início da segunda metade dos anos 2000, eu comparecia. E hoje, sempre que ouço “Kashmir”, me recordo daquelas noites regadas a muito chopp e Rock and Roll dos bons e na veia e de ter ajudado para que Jimmy Page aceitasse aparecer por lá, em uma noite elétrica de domingo, para promover o trabalho social que o guitarrista sustenta na sua Casa Jimmy, em Santa Teresa.
22. “Guinevere”, Rick Wakeman. Quando eu me sentia meio solitário nos fins de semana, costumava dar um pulo, normalmente aos sábados, no Esch Café, restaurante, bar e charutaria, na Dias Ferreira, no Leblon. Uma noite, enquanto tomava umas doses de Jack Daniels no balcão, conversando fiado com o barman, uma ruiva sentou-se ao meu lado. Puxei papo, tipo Charlie Harper, personagem hedonista da ótima série “Dois Homens e Meio”. Apresentei-me e ela, para o meu espanto, disse que se chamava Guinevere. Ficamos um bom tempo ali conversando, mas, diferentemente do personagem da série, interpretado magistralmente pelo ator Charlie Sheen, voltei pra casa sozinho. E sempre que coloco para tocar Guinevere, me lembro daquela noite etílica, esfumaçada, e da ruiva misteriosa.
23. “Pela Luz dos Olhos Teus”, Miucha e Tom Jobim. No verão de 2006 fui acompanhado a um show da Miucha na saudosa Mistura Fina, na Lagoa. Naquela noite, ao som dessa beleza de canção, sob olhar da irmã do São Chico Buarque de Hollanda, iniciei um curto, mas intenso romance de 7 meses. Foi eterno enquanto durou.
24. “Stormy”, Santana. Sempre que chegava bem cedo no quiosque da orla de Ipanema, em frente à rua Teixeira de Mello, normalmente aos fins de semana, para encontrar amigos e amigas, colocava no ipod a versão incrível que Santana fez para o sucesso de 1967 do grupo Classics IV. E hoje, quando a ouço na voz maravilhosa de Greg Walker, protagonizando ao lado da guitarra assombrosa de Santana, me lembro daquelas manhãs deliciosas papeando com a turma sobre futebol, música, cinema, Rio, política, Brasil.
25. “Tempo de Estio”, Marcelo. Canção composta por Caetano, mas foi na voz e interpretação do Marcelo que a gravação de 1977 estourou. Quando a ouço, sinto como se estivesse no Posto 9.
26. “Cause We've Ended as Lovers”, Jeff Beck. Essa foi a música instrumental que coloquei para tocar logo em seguida que ouvi a porta da sala do apartamento em que vivi durante 12 anos, na Barão da Torre, em Ipanema, bater. O romance tinha chegado ao fim. Eu sabia; ela, não.
Ainda na cama, fiquei ouvindo a guitarra de Jeff chorando enquanto observava no teto o ventilador enferrujado girar devagar. Como na cena do início de Apocalipse Now.