O Outro Lado do Muro

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Mesmo forte, gelado e cortante, o vento não impediu que eu o enfrentasse no início de uma manhã de agosto em que o termômetro marcava 7 graus, a temperatura mais baixa registrada aqui no sítio neste inverno longo, seco e congelante.

Quase como uma anã branca apocalíptica, o sol daquela manhã, parcialmente encoberto pela densa neblina, resolveu, finalmente, despertar e começava, preguiçosamente, a secar o gramado molhado pelo sereno da madrugada, forçando uma fina névoa a abandonar as folhagens das plantas e, vagarosamente, subir, espalhando-se e desintegrando-se pelo ar. Por um momento, os seus raios amarelados me fizeram lembrar de algumas linhas de “O Chamado da Selva”, do escritor americano Jack London, clássico da literatura juvenil que devorei quando, ainda garoto, colecionava miniaturas de automóveis de metal da Matchbox e montava pequenos aviões de plástico da Revell.

Como os brinquedos, o livro se perdeu com o tempo, mas ainda me recordo de partes dos parágrafos em que o escritor descreve Buck, o cão-lobo protagonista, dormindo calmamente ao lado da cabana de madeira na gelada Alasca, se aquecendo sob o sol, na descrição detalhada de London que nunca me esqueci, mesmo depois de tantos anos da leitura.

E foi nessa mesma época, lá pela metade dos anos de 1970, em que li as aventuras de Buck puxando trenós pela neve, que, pela primeira vez, o ruído estridente do despertador de um relógio, seguido pelo badalar dos sinos do seu carrilhão, no início de “Time”, canção do The Dark Side of the Moon, antológico álbum do Pink Floyd, lançado em 1973, atingiu em cheio os meus sensíveis ouvidos infantis. E ao som do recordista de vendas e de tempo nas paradas da banda inglesa tocando nos fones, atravessei uma parte do sítio para levar o "café da manhã" e gotas de anti-inflamatório para Manu, minha graciosa coelha de pelos cinzas e brancos que se recupera de uma leve lesão em uma das patas.

A pressa, o vento e o frio não foram obstáculos para que eu ficasse mais alguns minutos com Manu. Tempo suficiente para que a observasse atentamente após receber o medicamento durante os 20 minutos iniciais do disco. Ficar ali, ao lado da minha delicada amiga, admirando-a se deliciar com folhas de alfaces e couves, enquanto a emocionante e dramática “The Great Gig in The Sky”, introduzida pela sonífera guitarra slide de David Gilmour, conduzida pelo vocal solo impressionante de Clare Torry deslizando, comovente, sobre os acordes jazzístico do piano de Richard Wright, me fez, por um momento, pensar em libertar Manu da sua confortável e segura casa, para que corresse livre pelo sítio e, quem sabe, se aventurasse pelas matas fechadas, espessas, misteriosas e perigosas da região. O seu habitat natural que ela ainda não conhece.

Na verdade, o pensamento momentâneo de deixar Manu ir embora foi induzido por um verso da letra da primeira canção do disco, “Breathe”, que pede, metaforicamente, para que o coelho fuja, para que não se deixe intimidar pelo sol, para que continue cavando sua toca... e outra... e mais outra. Sem descanso.

E é sobre opressão, morte, loucura e o poder do dinheiro imposto pelo capitalismo brutal, que o primeiro álbum conceitual do Pink Floyd foi criado e construído pela mente contestadora do baixista Roger Waters, que, nos anos seguintes, permaneceu perseguindo e recorrendo a temas relevantes e inquietantes que afligem a sociedade pós-Segunda Guerra, que o atormentam desde que se tornou a cabeça pensante da banda e que foi determinante para que ela se transformasse em um ícone do Rock. Roger também idealizou os outros grandes álbuns lançados após o gigantesco sucesso de The Dark Side of the Moon até a sua saída, em 1985.

Enquanto David Gilmour e Richard Wright, excepcionais músicos, comandavam a criação sonora da banda, o baixista, e a sua pena afiadíssima, escrevia letras sensíveis e emocionantes para as canções do álbum Wish You Were Here, dedicado a Syd Barrett, um dos fundadores do Pink Floyd, que enlouqueceu em consequência do seu mergulho profundo e inconsequente no LSD durante a década de 1960.

Bebendo em sua fonte quase inesgotável de criatividade, Roger voltou a bater forte no capitalismo na concepção do incrível e potente Animals, enquanto, quase que em silêncio, foi arquitetando o meu preferido da banda: o mitológico álbum duplo, The Wall, quase autobiográfico, que, neste ano, está completando 45 anos do seu lançamento. Um pouco de tudo de parte da vida de Roger Waters está impresso nessa obra-prima: a infância sem a presença do pai, morto nos campos de batalha, a mãe superprotetora, os professores tiranos e opressores, o abandono, a pressão durante a carreira musical, a visão agudamente crítica sobre uma sociedade ameaçada por ídolos fascistas, a violência policial contra jovens, negros, homossexuais, usuários de drogas.

Após cuidar de Manu retornei para casa pensando o quanto seria precipitado, arriscado, soltá-la para a liberdade, o quanto seria perigoso, já que existem vários tipos de predadores neste pedaço da vasta Mata Atlântica que domina a região. Ao mesmo tempo me lembrei de duas canções: “Wild World”, de Cat Stevens, que canta e conta o pedido melancólico de um cara apaixonado que, após levar um fora da namorada, que meteu o pé na estrada, a avisa das várias dificuldades que ela enfrentará desprotegida, em um mundo selvagem. E “Cuide-se Bem”, do Guilherme Arantes, que tem a mesma pegada de alerta sobre os perigos que se encontram espalhados pelos cantos e ruas das grandes cidades.

Pensei também em “A Vila”, filme dirigido por M. Night Shyamalan que apresenta uma comunidade feudal em que o seu líder, para proteger os moradores de um fictício e misterioso ser, criado por ele próprio, criava situações que os amedrontassem, obrigando que todos evitassem atravessar os pontos que demarcavam o limite da cidadela. No final, para espanto e surpresa dos personagens e dos que assistem o filme, e me perdoem pelo spoiler, aquela vila medieval estava, na verdade, localizada no meio de um centro urbano, de uma metrópole, em pleno século XXI.

E todos esses pensamentos, lembranças, canções, álbuns, filme, que tomaram conta de uma das minhas várias manhãs frias de agosto, me fizeram também questionar os quase 8 anos em que optei viver aqui, no meio do mato, afastado de quase tudo, longe de uma metrópole, da cidade grande que nos impõe pressão e estresse o tempo todo; que nos ameaça diariamente com violência e poluição. E venho, recentemente, me perguntando se não chegou o momento de pular esse imenso muro verde que me protege, que me cerca de segurança e bem-estar, e voltar a encarar o meu habitat natural que é o Rio de Janeiro, uma grande cidade, com todos os seus monstros e predadores. Reais e imaginários.
E como o Buck, na história do Jack London, também ouço o chamado... só que de uma outra selva.