Sting e Cybill na minha tarde febril

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Naqueles primeiros meses do curso de jornalismo, em 1983, depois de alguns anos vivendo na tranquilidade de Petrópolis, eu ainda me sentia assustado com as longas distâncias que separavam o subúrbio onde eu morava e a Zona Sul, onde se localizava a faculdade. Me sentia extremamente incomodado com o barulho do trânsito, com a pressa das pessoas, o gigantismo desafiador da metrópole, o sol sempre presente e ardente, o calor insuportável e invencível. Os cinco anos em que vivi na cidade serrana antes de retornar ao Rio, em 1982, me impuseram um ritmo de vida totalmente diferente do que eu estava tendo de encarar novamente.

Ouvir música durante o trajeto, nos fins das tardes, durante a semana, até aportar no pátio da FACHA, perto das 19h, era o escapismo perfeito para aliviar aquelas pequenas crises de pânico que eu sofria. Os 40 minutos que eu levava de ônibus da minha casa na Zona Norte até Botafogo era o tempo exato de duração da maioria dos álbuns que ouvia nas fitas cassetes que eu gravava, pacientemente, em um modesto equipamento de som. Invariavelmente lançamentos recentes de bandas de heavy metal.

“Synchronicity”, do The Police, lançado em 1983, quebrou esse meu círculo auditivo vicioso que envolvia, entre tantos outros, Ozzy Osbourne, Judas Priest e Iron Maiden, que consumiam horas e horas do meu tempo dedicado à música. Quando o quinto álbum da banda inglesa atingiu os meus ouvidos pela primeira vez, trouxe sentimentos meio parecidos com os de quando comecei a ler Theodor Adorno e Herbert Marcuse nos primeiros contatos com as aulas de Sociologia. Algo mudou de verdade. Uma mudança lenta e gradual, como o retorno da democracia naquela metade dos anos de 1980, mas foi uma mudança.

Os discos anteriores do Police não me atingiram em cheio como o “Synchronicity” me atingiu durante aqueles meses após o seu lançamento. Por mais que às vezes eu me pegasse cantarolando “Roxane” e “Message in the Bottle”, os primeiros e grandes sucessos da banda, foi só no último, antes da separação do trio, que comecei a me aprofundar nas letras com temática filosófica em que Sting resolveu apostar para preencher aquela sonoridade luminosa e grandiosa criada pela sua genialidade, pela bateria diabólica de Stewart Copeland e pela guitarra simétrica e temperada de Andy Summers.

A força musical de “Synchronicity” me soava tão intensa e transcendental naqueles longos minutos no interior do ônibus que, mesmo próximo de chegar ao meu destino na Praia de Botafogo, quando a energia das pilhas do Walkman já estava nas últimas e o som já não soava com qualidade, fidelidade e precisão, e a voz de Sting se arrastava áspera e vagarosa como a de Leonard Cohen, eu permanecia hipnotizado ouvindo-o, quase soletrando, os versos da penúltima canção do álbum, a quase mística “Tea in the Sahara”: - Please don't ask us why/Beneath the sheltering sky/We have this strange obsession/You have the means in your possession.

Quarenta e um anos depois de ouvir pela primeira vez o álbum do Police que desbancou “Thriller”, de Michael Jackson, que, durante inúmeras semanas e meses, dominava as paradas musicais mundo afora, voltei a ouvi-lo diariamente, também nos fones, como que para relembrar aquelas viagens barulhentas de ônibus pelas ruas do Rio a caminho da faculdade. Talvez também para tentar driblar o incômodo causado por uma virose agressiva que me derrubou por quase duas semanas, com curtas, mas intensas febres incendiárias que me deixavam, entre calafrios e suores, delirando na cama durante as tardes de fim de setembro.

E foi em uma destas tardes febris, buscando, desesperado, além do álbum do Police, algo na TV que aliviasse um pouco todas aquelas dores e desconfortos trazidos pela virose, quando o meu corpo pegava fogo e doía como se tivesse sofrido dezenas de fraturas, que “Taxi Driver”, uma das muitas obras-primas do diretor americano Martin Scorsese, surgiu na tela e, com o clássico, uma cena em que a imagem da estonteante atriz Cybill Shepherd me inspirou a colocar para tocar a voz de Sting mais uma vez, só que, naquele momento, interpretando “I Burn For You”, na versão mais jazzística gravada ao vivo para o álbum “Bring on the Night”, de 1985. As dores, a febre, o sorriso provocante de Cybill atormentando o taxista paranóico interpretado visceralmente por Robert De Niro me fizeram até temer que o quarto se incendiasse.

Quando o filme terminou, coloquei “I Burn For You” para tocar novamente e fiquei relembrando a última cena com De Niro olhando, pelo retrovisor, Cybill no banco de trás do táxi que circulava pelas caóticas ruas de Nova Iorque dos anos de 1970, enquanto Sting sussurrava os versos: - Na sombra do seu guarda sol o seu amor flui através de mim/ Quando a noite dobra o tempo em torno de nossa cama, em paz dormimos entrelaçados/Eu queimo por você. Eu queimo por você.