CULT, POP & ROCK
Infinito amor
Publicado em 12/12/2024 às 12:55
Alterado em 12/12/2024 às 12:55
O início do primeiro dezembro da década de 1980 se apresentava tranquilo até a notícia da morte de John Lennon me atingir em cheio como a bala que tirou a vida de um dos maiores ícones e ídolos da história da música. Não me recordo bem como fiquei sabendo da tragédia, mas, em uma época sem a variedade e amplitude da mídia de hoje em dia, sem internet, redes sociais, telefonia celular, portais de notícias, centenas de canais nas TVs, devo ter sido informado por alguma estação de rádio. O mesmo rádio que, pela primeira vez, ainda menino, me apresentou a Lennon e aos seus outros amigos de Liverpool, que completavam a formação mágica, sublime, fantástica, dos Beatles.
Confesso que o meu membro preferido da banda inglesa sempre foi Paul McCartney. Minha admiração por George Harrison e Lennon é imensa, mas eu via em Paul o músico mais completo, o de voz mais bonita, e suas canções, com os Beatles e nos álbuns de sua longa carreira solo, de alguma forma, me conquistaram mais fortemente como ouvinte nem sempre atento e seletivo. Os seus álbuns “Band on the Run” (1973) e o ao vivo triplo “Wings Over America” (1976), antes, durante e após a partida de Lennon, nunca pararam de girar no meu toca-discos.
Naqueles dias que antecederam a morte de Lennon, os preparativos para as festas natalinas em minha casa se arrastavam. O ano no colégio terminara sem maiores sobressaltos, apesar da costumeira dificuldade com as provas de matemática de final de ano, que me deixavam desesperado por temer ter que ficar mais alguns dias no colégio em recuperação ou, pior, ser reprovado e cair para a segundona nos estudos. Felizmente tudo acabou bem. Um colega fiel passou pela minha carteira antes de entregar a sua prova e, aproveitando o descuido da rígida professora, deixou, enrolada em um pequeno papel, as duas equações prontinhas que eu não conseguia resolver.
Antes, em novembro, as rádios FM enchiam o meu quarto com duas das principais canções do álbum “Double Fantasy”, de John Lennon & Yoko Ono, lançado naquele mês e estourando nas paradas mundo afora: “(Just Like) Starting Over” e “Woman” tocavam dia e noite. O ar do penúltimo mês do ano, abafado pelo verão que se aproximava, e já dominado por um clima de fim de ano festivo e apressado, trazia um ambiente familiar igual ao de muitos outros do passado: montagem da árvore de Natal, aperto no orçamento para compras de presentes, discussões e decisões sobre onde seria a reunião da noite do dia 24 e do réveillon... até que veio o fatídico 8 de dezembro.
Lembro que após o assassinato de Lennon o clima mudou completamente entre todos da minha casa. Não apenas pela violência em si, mas pela figura emblemática e mitológica que ele tinha se tornado antes mesmo do seu fim. Minha mãe chorava em frente à TV quando surgiu a imagem do músico, todo de branco, ao piano, não menos branco, interpretando “Imagine”. Me recordo também, levemente, de alguns momentos simbólicos daqueles tristes dias, mas não lembro se ganhei, ou comprei, o então recém-lançado “Double Fantasy” antes ou depois da morte de Lennon. A foto do beijo carinhoso entre o casal, na capa, se transformou, pelo menos para mim, com o passar dos anos, depois que ele se foi, uma das mais fortes e bonitas lembranças que guardo dele. E que, imagino, talvez tenha passado a acalmar os corações dos milhões de fãs destroçados pela perda precoce do ídolo de forma tão trágica.
Penso que a imagem dos rostos plácidos do casal, com os seus lábios se tocando carinhosamente, com o passar dos anos tenha feito com que os muitos admiradores de Lennon, que nunca aceitaram Yoko em sua vida, considerando a japonesa uma intrusa, "a destruidora dos Beatles", começassem a vê-la e a aceitá-la como, de verdade, ela foi e ainda é: a mulher forte e corajosa que o músico amava profundamente. Quando todos nós, após os dias seguintes a morte de Lennon, ainda com nossos espíritos pesados e doloridos, finalmente decidimos compreender melhor a forte relação do casal através da letra direta e reta de “Woman”, a canção de maior sucesso do álbum, sem mensagens poéticas emblemáticas difíceis de decifrar, sem entrelinhas, sem duplas conotações, como as de várias outras composições da carreira do músico, resolvemos aceitar Yoko e a admirá-la como a mulher adorável e poderosa que conquistou John Lennon, um dos artistas mais brilhantes da história da música.
Na canção, o ex-Beatle faz uma declaração apaixonada abandonando os chavões e clichês das canções de amor, do amor apenas pelo amor, como vários sucessos românticos no início de sua famosa banda de Liverpool, na década de 1960. Ao compô-la, Lennon abandonou as mensagens de um sentimento quase que egoísta e sem precisar de muitas explicações: "Eu te amo, mulher. E pronto. Isso basta. Você me completa. Você é linda. Você me faz feliz, blá, blá, blá."
Em “Woman”, ele fez questão de deixar registrado a importância de Yoko em sua vida de uma maneira que não deixassem dúvidas para ela e para quem ouve a bela balada. Como um recado explícito para os que torciam o nariz para a relação intensa do casal e para os que não entendiam o amor incondicional que ele tinha por ela, a letra da música é, também, dedicada a um agradecimento a Yoko. E, mais do que isso, é um pedido de desculpas por não ter conseguido, até a composição da canção, se expressar como devia e podia durante as duas décadas em que estiveram juntos.
Nestes 44 anos sem John Lennon, deixo aqui uma dica de presente de Natal para os leitores: o álbum “Double Fantasy”. Se possível o da edição em vinil, como foi lançado na época, como uma homenagem ao maravilhoso John Lennon e a sua querida, dedicada e poderosa Yoko Ono. Para que sempre que o presenteado olhar o casal se beijando na capa em preto e branco tenha a certeza do imenso, forte, inesgotável e infinito amor que eles viveram.