CULT, POP & ROCK
Cazuza completamente blue
Publicado em 09/01/2025 às 17:45
Alterado em 09/01/2025 às 17:45
Em várias noites enluaradas do outono e do inverno, o sítio onde vivo fica completamente azul. Desde que me mudei para cá, anos atrás, talvez sejam esses os momentos de maior beleza que presencio. As centenas de árvores, o vasto gramado, as relvas que encobrem as pequenas colinas, a vegetação rasteira que acompanha o longo, raso e estreito riacho que corta o local e toda a região, são tomadas por uma coloração azulada, refletida por um céu estrelado translúcido, muito próxima das belas obras do francês Claude Monet.
Hoje, não mais, mas, no início, nessas noites especiais, eu pegava a minha velha cadeira de praia ipanemense, uma bebida preparada especialmente para essas ocasiões, o pequeno iPod com dezenas de alguns dos meus álbuns preferidos, me sentava na ponte arqueada que se eleva sobre o riacho, e jogava música para dentro dos ouvidos enquanto, maravilhado e entorpecido, passava horas contemplando aquela conjunção magnífica da natureza que preenchia todo o sítio de poesia e a minha alma e o meu coração de paz e prazer.
Nos primeiros quatro anos, dois casais de gansos viviam por aqui. E em várias dessas noites eles também aproveitavam as águas transparentes, tranquilas, iluminadas pelo luar, para nadar e se banhar em um vaivém lento e performático. Como se ouvissem os sons das músicas que corriam pelos fios dos fones e que eu curtia solitariamente.
Em uma tarde abafada deste início de ano, sentado na varanda papeando com o meu irmão Marcoz, que está passando suas férias no sítio, contei a ele sobre essas noites especiais. Motivado pela canção “Completamente Blue”, do Cazuza, que saía da pequena esfera da Alexa, em uma sequência de vários sucessos do cantor e poeta que, em julho, completará 35 anos que nos deixou. Durante um bom tempo, observando a chuva que invariavelmente surge por aqui no verão quase amazonense, ficamos conversando sobre os primeiros álbuns do cantor e falando sobre nossas preferências nos trabalhos solos iniciais, desde que decidiu sair do Barão Vermelho e mergulhar em uma carreira de enorme sucesso.
Esses três primeiros álbuns de Cazuza, é bom que se diga, não formam uma trilogia conceitual, e nunca foram tratados assim pelo artista ou pela crítica, como tal, mas, sob a minha análise anárquica, descompromissada e apaixonada, fazem parte de uma sequência de composições – música, poesia, letra – como algo que remete, em uma comparação surrealista, aos primeiros bilhões de anos da criação e transformação do universo pós-Big-Bang: “Exagerado”, o primeiro, o da explosão. Em seguida, o “Só Se For a Dois”, o da expansão e, fechando essa minha trilogia-fantasia, o álbum “Ideologia”, como o da organização de todos os elementos que o brilhante poeta adquiriu nos seus anos de formação artística, observando e consumindo detalhes e sutilezas da vida social e cultural que o cercava, até construir um mundo próprio cheio de poesia e música.
Lançado no final de 1985, após um rompimento inesperado e dramático de Cazuza com o Barão Vermelho, em julho daquele mesmo ano, “Exagerado” estourou nas rádios logo que foi apresentado ao público e à mídia, conduzido pela música título, um rock visceral dominado pela sua voz rouca e carregada do sotaque carioca-zona sul-sangue azul do cantor em uma interpretação magistral, carismática, cheia de personalidade. Composta em parceria com Ezequiel Neves, seu conselheiro, guru e camarada dos bares e das festas nas noites do Rio e dos backstages, “Exagerado” manteve em sua letra o mesmo estilo de personagem urbano romântico-extremista-fatalista, entregue aos dramas das paixões mal resolvidas, como aos de outros vários sucessos do cantor com o Barão, mantendo o charme de eterno maior abandonado.
Leoni, cantor e baixista, coautor de “Exagerado”, em uma rede social, debatendo sobre a canção, destrincha alguns versos e frases de duplo sentido da letra, como, por exemplo, "Por você eu largo tudo, carreira, dinheiro, canudo...". O ex-membro do Kid Abelha confidenciou que essa parte também poderia ser interpretada, nas entrelinhas, como se o personagem exagerado da história, para conquistar a amada, abandonaria até as drogas, no caso específico, a cocaína.
Produzido por Nico Rezende, que assumiu os teclados no álbum, piano e sintetizadores, e Ezequiel Neves, o disco também ficou marcado pela bela balada “Codinome Beija-Flor”; o blues “Mal Nenhum”, em parceria com Lobão, e a edipiana “Só as Mães São Felizes”, como se o cantor quisesse fazer barulho parecido com o de Jim Morrison na polêmica “The End”, um dos maiores sucessos do The Doors.
Após o sucesso de crítica, Cazuza tirou 1986 para promover o seu primeiro voo solo, cuidar da saúde e começar a pensar no próximo trabalho, que seria lançado em março de 1987, o ótimo “Só Se For a Dois”. Mantendo Ezequiel na produção e trocando Nico por Jorge Guimarães, Cazuza mudou de gravadora, permaneceu com o guitarrista Rogério Meanda, com o baterista Fernando Moraes e convidou Nilo Romero para assumir o baixo e João Rebouças, os teclados.
“Só Se For a Dois”, com Cazuza cheio de vida, sorridente e bronzeado na capa, na bela foto de Flávio Colker, talvez seja o álbum mais comercial do cantor, que, mesmo com a saúde já afetada, manteve-se cantando como nunca, em interpretações energéticas para canções em que sua poesia permanece refinada e aguda.
Uma sequência de composições impactantes como a da canção título do álbum, com citações comparativas e paradoxais; “Solidão que Nada” e “O Nosso Amor a Gente Inventa” foram as de maiores sucessos comerciais; a melódica, e quase ingênua, “Ritual” remete a “Bilhetinho Azul”, do primeiro álbum do Barão Vermelho; e tem também as mais pesadas como “Heavy Love” e “Lobo Mal da Ucrânia”, em que a guitarra cortante de Meanda duela com a voz rouca de Cazuza; mas a minha preferida do disco e, talvez, de toda a sua carreira, é a quase biográfica “Completamente Blue”: "Sou feliz em Ipanema, encho a cara no Leblon..."
“Ideologia”, o terceiro dessa minha trilogia imaginada, certamente o seu trabalho mais forte e polêmico, foi gravado no fim de 1987, logo após o cantor voltar dos EUA, onde foi acelerar o tratamento contra a AIDS em um hospital de Boston. Da banda que esteve com o cantor no álbum anterior, apenas o baixista Nilo Romero permaneceu, assumindo a produção ao lado do próprio Cazuza e de Ezequiel Neves. Ricardo Palmeira substituiu Rogério Meanda nas guitarras, João Rebouças e William Magalhães dividiram os teclados e Cláudio Infante e Sergio Della Monica assumiram as baquetas.
Lançado no início de 1988, mesmo com a saúde já muito comprometida, o cantor manteve a qualidade vocal dos seus dois primeiros discos solos e os da época do Barão, utilizando-a de forma potente e sem economizar nas notas mais complicadas, como na canção título, cheia de desesperança com a política nacional e com a sociedade de um país, naquele final de década, de volta para as mãos dos civis, mas, ainda, dominado pela direita e por uma elite reacionária, mesquinha e egoísta. No meio de tanta aspereza e desesperança, Cazuza, porém, traz também leveza e delicadeza para o álbum, como em “Faz Parte do Meu Show”, a canção bossa nova que pegou os fãs e a crítica de surpresa; repetindo a dose em “Minha Flor Meu Bebê”, composta em parceria com o baixista e seu antigo parceiro de Barão, Dé.
Certamente “Ideologia” é o trabalho mais maduro do cantor e, talvez, o de letras mais ácidas, políticas e sem pudores. Como deixou claro na faixa título e em “Boas Novas”, em que a luta contra a doença é citada de forma natural, sem alarde e gritos de revolta, o que seria feito um pouco mais tarde, em depoimentos fortes na imprensa, nas capas de revistas, em que expôs suas chagas sem medo; como em shows concorridos e, um pouco mais tarde, no álbum “Burguesia”, de 1989.
“Ideologia” enfileira canções de enorme força musical e sensibilidade poética. Algumas delas já fazem parte dos clássicos inabaláveis e transcendentais do rock brasileiro, como “Brasil”, um manifesto corajoso que disseca a história política e social do país em que Cazuza, filho único de um casal da classe alta, mas que também se achava, com sua voz e poesia, no direito de demonstrar o seu desconforto com o que se passava ao seu redor.
O cantor também deixa uma mensagem direta para a mesquinhez das pessoas na fortíssima “Blues da Piedade”, composta com o velho amigo Roberto Frejat. Sem papas na língua, sem meias palavras, ele solta o verbo e esculacha geral os rasos, os pueris, os medíocres que se multiplicaram e já eram muitos desde que um dos maiores personagens da nossa música nos deixou, três décadas e meia atrás.
Mas ainda há resistência no meio de tanta pobreza de espírito. João Guilherme, meu sobrinho de 12 anos, é um fã ardoroso de Cazuza. E só fiquei sabendo dessa paixão em um final de tarde de um lindo dia de outono do ano passado, quando ele veio passar o fim de semana no sítio, trouxe o seu violão e, sentado ao meu lado, em frente de casa, começou a dedilhar uma das canções do poeta enquanto a lua surgia mansamente e começava a se preparar para deixar o sítio, mais uma vez, completamente blue.