O mirabolante golpe do motoqueiro com o voto impresso

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Por ÁLVARO CALDAS

Álvaro Caldas

A senha para o golpe estava escrita num pedaço de papel guardado no bolso de sua jaqueta. Devia apresentá-la no ato final do plano concebido para culminar com a instalação de um governo personalista e autoritário. O motoqueiro de óculos escuros e pistola automática enfiada no coldre trafega em alta velocidade pela larga estrada vazia em direção ao aeroporto internacional. Precisa chegar a tempo para pegar o voo expresso da meia-noite, antes que o pano caia, as cortinas fechem e ele possa ser detido.

Tudo começou por volta das três das tarde, mas a maneira como ele desapareceu foi confusa e permanece inexplicada. Depois se entendeu que tudo fora absolutamente coerente com o personagem. Ele desconhecia os horários e itinerários dos voos e as regras de funcionamento do aeroporto. Não queria passar pela aduana. Conduzido por sua extremada obsessão, precisava concluir sua tarefa. Entregar a alguém aquela preciosa senha ou embarcar no voo para o exílio na Turquia.

Durante dias, semanas e meses repetiu a mesma cantilena no curralinho e em suas lives das quintas-feiras. O assunto sempre foi a suspeição sobre o voto eletrônico, variando apenas o tom e o acréscimo de uma nova frase. Da última vez voltou a atacar a realização de eleições se o Congresso não aprovasse o projeto de comprovante impresso do voto na urna. Seria uma farsa. Preparando o clima para o calculado ataque às instituições, anuncia que sem eleições limpas e democráticas suas tropas irão para as ruas e farão com que a vontade popular seja respeitada.

Correu um rumor de que vontade popular é a sua vontade. Referindo-se a um juiz do tribunal superior que o contestara, indagou se os juízes haviam se tornado semideuses, intocáveis em suas togas, sugerindo que poderia removê-los. “Quem esse juiz pensa que é?” Suas falas beligerantes e os desfiles militarizados de motoqueiros de capacete e jaqueta de couro não conseguiam mudar o cenário. O mitômano exasperou-se.

Na via expressa, o piloto de óculos escuros contorna um engarrafamento e manda à merda um motorista que criticou sua manobra. Acelera sua potente máquina na reta de descida. De repente, essa improvável viagem lhe parece interminável. O caminho estava traçado de antemão. Nada iria intimidá-lo. Os habitantes desse país tropical podem descartar as ilusões. O mito se sente dono do mundo com o peso de um revólver contra sua perna.

Vai prosseguir nem que seja na marra em busca desse governo radical de ultradireita, que promete exercer um autoritarismo grotesco, comandado pela família Bolsonaro, tendo como aliados principais militares ativos e inativos seduzidos pelo canto das ditaduras, os políticos que misturam seus negócios com as mesmas ditaduras, e milicianos de sua irmandade de fé.

Alguns dos planos anteriores fracassaram. Tentou mudar a rota a partir do momento em que se sentiu atropelado pela gestão criminosa na pandemia. Em seguida, enxergou pelo retrovisor a aproximação de um ex-sindicalista de codinome Lucas, finalista da prova de salto triplo na Olimpíada de Tóquio, prova que o atleta de nove dedos já vencera duas vezes. Dado com morto depois de trancafiado numa prisão federal de uma cidade ao Sul, foi absolvido pelos juízes da corte superior, e renasceu das cinzas.

A mudança de regime, com a adoção do semipresidencialismo francês, foi outra alternativa frustrada. O mesmo tipo de aventura golpista que castrou o poder do presidente João Goulart, em 1961, quando da renúncia de Jânio, o louco. Desafiando a Constituição, os três ministros militares não aceitaram a posse do vice Jango, e o Congresso sacramentou o serviço mudando o regime para parlamentarista. Menos de dois anos depois, um plebiscito trouxe de volta o presidencialismo.

Na estrada iluminada, o motoqueiro consulta o relógio preocupado. O aeroporto parece uma miragem distante. Sente o temor de perder a hora de embarque do voo expresso que sai à meia noite .
Como um acrobata amador que salta no escuro, o mito aposta numa abrupta quebra da democracia, em meio ao cenário de uma crise devastadora. Sonha com uma noite dos cristais. Acabou por ficar com uma única carta na mão. Faz chamadas de vídeo incitando seguidores. Quer ganhar as eleições com a ajuda das milícias, comandos vermelhos e outras agremiações criminosas que controlam o tráfico, as comunidades e os presídios. O que lhe interessa é o tumulto, o voto impresso de cabresto.

Houve um momento de susto e estupefação quando os juízes dos tribunais federais o acusaram de crimes. Aprovaram a abertura de inquérito por conduta criminosa na investigação sobre as fake News e suas ameaças ao sistema eleitoral. Não resta dúvida de que suas intenções foram claras desde início, entrou em cena falando em fascismo. Em todo esse tempo seu comportamento foi marcado por uma assustadora nitidez.

Mas agora precisou se apressar. Mal teve tempo para consultar a meteorologia e preparar a viagem. Tirou do armário a maleta preta e começou a jogar dentro as peças de roupa. Misturadas a elas, no fundo, vislumbrou sua coleção de cruzes suásticas, que sempre leva em suas viagens. Conferiu a senha, “voto impresso de cabresto”, e enfiou a folha de papel no bolso da jaqueta. Subiu na moto e acelerou. Sabia que precisava chegar a tempo de pegar o voo da meia-noite, sua última chance de escapar.

*Jornalista e escritor