
ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
E se a realidade fosse côncava e convexa?
Publicado em 24/02/2022 às 13:05
Alterado em 24/02/2022 às 13:05

Sonhei com um dia sem notícias. Ando, como todo mundo, de saco cheio, até aqui com esta insana realidade de que nos circunda. Chega de Putin, com o olhar gelado de um russo asiático, sentado na ponta de sua vasta mesa de mármore no Kremlin, mandando disparar ogivas e foguetes. Basta da expressão murcha de Biden, petrificado em sua indecisão. Não haverá guerra nuclear na Ucrânia desmembrada e dividida, as potências disputam áreas estratégicas e poderio econômico.
Mais dramático para nós é ter que suportar a correnteza de lama e de dor, o luto que transborda do dilúvio de Petrópolis. Pus-me à procura de um tema, que pode ser côncavo ou convexo, impreciso ou excitante, mas que escape da tentação de fazer o registro diário dos fatos. Dotado deste poder de desbunde, já me sinto aliviado por não ver todo dia a cara do energúmeno desqualificado, que trás as mãos sujas de sangue dos seus crimes.
Ao mesmo tempo não precisarei me preocupar com a miserável realidade do SUS, que triplicou o atendimento a pessoas com ansiedade e transtornos mentais. Nas ruas, elas jazem caídas nas calçadas, esfomeadas. Tocou o foda-se. Nada desta torpe realidade me importa hoje.
Hoje é dia de fazer as coisas por telepatia, de dar as mãos para a Rita Lee e sair ao vento e ao léu, em comunhão com o imponderável do nada melhor do que não pensar em nada. Nossa vida é um martírio, nosso alimento é pouco, nosso trabalho, forçado. Vivemos em plena escravidão, escreveu o poeta Orwell em sua conversa com os bichos.
O escritor Julián Fuks fez uma tortuosa busca em sua última coluna para achar a primeira frase de um romance que se propõe a escrever. Infindável e primorosa procura pela frase de abertura, que ele deseja “precisa e vaga”, ao mesmo tempo.
De minha parte, busco um tema para uma coluna que me livre do massacre do real. Consulto meu velho caderno de anotações, rabiscado à mão, encardido de tão manuseado. Na verdade, uma antiga Agenda Flash, 1990. Nela consta meu nome, o dia da semana e a hora em que nasci. Quem sabe para alguma coisa haverá de servir.
Ao longo do tempo fui juntando frases, impressões e pensamentos inolvidáveis, escritos que se situam no insondável abismo entre realidade e ficção. Logo nas primeiras páginas dou de cara com uma digressão em tons surrealistas, que pode ser o que desejo. Tem um título estranho, “Côncavos e convexos num dia de panfletagem”. Reproduzo parte do que escrevi num tempo imemorial.
“Andei pela Cidade e voltei com a sensação de que a maioria das coisas é côncava. Algumas são convexas, não resta duvida, mas a esmagadora maioria é côncava. Martelei a cabeça à procura de uma explicação. E nada. Nada mesmo do que conseguia imaginar convinha. Verdade que andei muito, estava cansado. Desci a Rio Branco umas três vezes. Depois subi. Entrei na Gonçalves Dias, rodei pelas praças. Da Tiradentes fui ao ancoradouro das barcas. Permaneci longo tempo parado nos Largos. Tenho essa atração desde a infância. Tenho quase certeza de que as pessoas ali agrupadas estão perdidas.
Permanecem um longo tempo nos pontos, conversando fiado. Esperando veículos enferrujados que passam lotados.
Era dia de panfletagem. No edifício Avenida Central tomei e elevador e desci no 22º andar. Encostado a uma janela tive que esperar a passagem do vento. Um grande aliado. Joguei tudo no espaço. Entrei em vários bares, me empanturrei de café. Cuspi preto. Fumei que nem um viciado. Nos banheiros deixei papéis amarfanhados. Impressos com palavras de ordem vãs. Minha esperança era de que os lessem, sentados naquelas privadas de louça inglesa. Nem sempre cumprimentava os garçons. Para entrar em alguns dos banheiros tive que pedir a chave.
Na Ouvidor, me distraí olhando vitrines. Me amarrei numas sapatilhas do Balé Bolshoi . Depois entrei numa livraria, acho que na Sete de Setembro. Li um trecho do manifesto surrealista de Breton: “La beauté sera convulsive ou ne sera pas” Minha vista se embaralhou. Breton falava da convulsão da beleza, enquanto eu pensava na revolução convulsiva. Abri a bolsa e larguei uns impressos em cima do balcão, entre os livros. Deparei com a barba do professor Rubens folheando um tratado, com uma foto de Gramsci na capa. Sorriu para mim com seu olhar cúmplice. A mesma cara que fazia na sala de aula do pré-vestibular.
Sai quase correndo, o balconista atrás, gritando que eu havia esquecido uma bolsa. No final da tarde pensei em descansar. Refletir. Os sapatos me apertavam. Amadureci a ideia sentado à mesa de uma Leiteria. Mulheres gordas e homens de cabelos brancos me espreitaram. Tirei os óculos. Tornei a colocá-los, enquanto mastigava uma torrada Petrópolis. Martelei a cabeça à procura de uma explicação. E nada. Tudo mais para côncavo do que convexo. Nada mesmo do que consegui imaginar convinha. Verdade que andei muito, estava cansado...”
*Jornalista e escritor