Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Som e fúria na campanha forjam Pacto pela Democracia

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Publicado em 27/10/2022 às 12:14

Álvaro Caldas JB

Escrevo na reta final de uma campanha em que se forjou a ferro e fogo, som e fúria, um Pacto pela Democracia. Uma semana exasperada pela alta tensão do segundo turno, na antevéspera de uma eleição presidencial de destino ainda incerto, que pode definir o futuro do país pelos próximos 5OO anos. Há favoritismo de Lula nas pesquisas e no clima que se sente nas ruas. Dias nervosos que gestaram uma inédita Frente Democrática de vasto alcance, aproximando forças da esquerda, da direita e do centro, com uma grande variedade na composição de cores e tons.

Algo como nunca se viu no oportunismo e na baixaria dos acordos na política brasileira, dominada pelos centrões de ladrões, aproveitadores e exploradores. Algo construído de cima para baixo e de baixo para cima, envolvendo pessoas, entidades, associações, partidos, artistas, cientistas, intelectuais, economistas, educadores, gente das mais diversas comunidades e órgãos de representação da sociedade, que divulgaram manifestos em defesa do regime democrático e se manifestaram nas redes e fora delas.

O que levou esse povo díspare e desigual nos costumes e nos gêneros a se juntar num pacto não escrito, não foi apenas a possível volta de Lula à presidência pela terceira vez. Foi o medo e o instinto vital de sobrevivência, a repulsa ao fascismo. Ou que nome seja dado à continuidade de um governo guiado pelo ódio, a intolerância e a violência, cercado de cães milicianos e desfiles de motoqueiros armados, que ameaçam a vida ordinária das pessoas. Sobretudo, a rejeição ao desprezo que manifestam à Democracia.

No andamento da campanha, pessoas começaram a se juntar, independente de sua cartilha doutrinária. Empresários e economistas liberais anunciaram voto no 13. Como escreveu o escritor Julián Fuks em seu Manifesto da Literatura contra a Mentira, o Ódio e a Insensibilidade, “é pelo momento tão agudo na história de um país que decidimos nos unir, apesar das nossas diferenças, da vastidão que nos caracteriza.”

Baixou um clima de Moncloa, o Pacto de diálogo e convivência democrática firmado pelos espanhóis, em 1977. Conduzido pelo governo do presidente Adolfo Suárez, o acordo conseguiu juntar os principais partidos políticos, associações empresariais, comissões e sindicatos de trabalhadores. Com suas luzes e sombras, o Pacto de Moncloa foi o impulso definitivo para a transição entre a ditadura nazi-franquista e a democracia.

Ponho-me na pele de um homem pra lá de meia idade vindo de uma acidentada trajetória, às vésperas de um acontecimento decisivo, com poderes para mudar o futuro. Nada mais trivial do que uma eleição, só que esta pode representar a perda do direito de viver em democracia, algo como nos retirar a liberdade e o ar que respiramos. Sinto um estremecimento no corpo só de pensar. Todos nos colocamos de prontidão, não aceitamos que o futuro seja conspurcado. Intolerável voltar a viver no lodo do arbítrio, num regime em que a verdade sai das câmeras de tortura.

Sou de uma geração em que os jovens lutaram por uma revolução social que se propunha a suprimir a democracia burguesa. Uma vez tomado o poder, constava do programa revolucionário a instalação de um governo provisório, denominado ditadura do proletariado. Todo o poder aos proletários e à sua facção dentro do Partido. Aos inimigos, os cárceres, sentenciou o camarada Grigori Zinoviev, em 1917. Dissidente, aliado de Trotsky, Zinoviev foi executado por Stalin. O regime bolchevique vingou, mas acabou empurrado para fora da História.

Reviravoltas fazem parte da errática trajetória dos seres humanos, em sua busca de sentido e significado, Um dia, voltam a se deparar com uma catástrofe tramada pela história. Veem a sua frente uma indevassável barreira de arame, impotência e humilhação, algo que poderia levá-los a rever Shakespeare: “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e significando nada” (Macbeth)

Nesta eleição presidencial, há fatos objetivos que não podem ser ignorados. O Brasil teve quase 700 mil mortos na pandemia, devido à incompetência e má fé do governo, que executou uma política de destruição do meio ambiente. Bolsonaristas mentem e não se importam com os fatos. Ignoram o aumento brutal da desigualdade, desprezam a liberdade e as minorias. Bolsonaro engendrou o surgimento de uma extrema direita fundamentalista, de fundo religioso e fascista, alimentada pela internet.

Estão dispostos a uma luta sangrenta contra todos os que consideram inimigos. A extrema direita prende e arrebenta. Derrotados, constituirão a base da oposição ao novo governo de uma ampla frente democrática. que terá como tarefa principal a reconstrução do país A esquerda sempre procurou fazer política.

PS 1 – “O som e a fúria”, de 1929, é considerada a obra mais importante do escritor norte-americano ganhador do prêmio Nobel de Literatura, William Faulkner. Com vozes narrativas distintas, saltos inesperados no tempo e ecos de tragédias gregas, o escritor retrata a violenta decadência dos Compson, família aristocrática do sul dos Estados Unidos.

PS 2 - Comemorei meu aniversário dia 26, junto com o centenário de nascimento do antropólogo e pensador Darcy Ribeiro, que aqui homenageio. Darcy será sempre um indignado, jamais iria se resignar. Pedi aos deuses de presente o retorno do Vasco da Gama para a primeira divisão e a vitória do incansável lutador Lula da Silva para a presidência.

*Jornalista e escritor

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