Novos mortais renovam a velha Academia

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Por ÁLVARO CALDAS

Busto de Machado de Assis

Devagar e aos poucos, a Academia Brasileira de Letras vai deixando de ser uma vetusta instituição habitada por seres dotados de uma falsa imortalidade A entrada de Heloísa Buarque de Hollanda, a décima mulher eleita para o antigo templo de escritores enfatiotados de fraque e cartola, bigode e cavanhaque, consolida uma tendência de acelerar o passo de um processo de renovação e mudança de ares, cores e gênero.

Foram saindo de cena nos últimos anos os literatos de texto empolado que se exibiam nos grandes salões, aos quais se juntaram políticos no exercício do poder e até generais membros de juntas militares. Em seus lugares entraram escritores, pesquisadores, jornalistas, biógrafos e artistas antenados com a vida cultural de seu tempo.

Heloísa nada tem de uma escritora convencional. Feminista, professora emérita da UFRJ, pesquisadora que se tornou referência no campo da relação entre cultura e desenvolvimento, com dedicação às áreas de poesia, relações de gênero e étnica. Seu olhar se voltou para estudar a cultura marginalizada e a digital. Nos últimos anos vem trabalhando com foco na cultura produzida na periferia das grandes cidades.

Sucede a Nélida Piñon na cadeira de número 30. Não se considera imortal e nem se incomoda com os 83 anos. Entrar para a academia talvez seja o seu último ato, ela disse. É autora de um punhado de livros decorrentes de sua intensa atividade de pesquisas. Escreveu sobre a explosão feminista, pós modernismo e política, Macunaíma, Asdrúbal trouxe o trombone, todos livros com grande destaque na época em que foram publicados.

Com a coletânea 26 Poetas Hoje, de 1975, reunindo uma turma de jovens que imprimia seus poemas em mimeógrafos, revelou uma nova geração de poetas marginais, como Ana Cristina Cesar, Cacaso e Chacal, que entraram para a história da literatura brasileira.

Pouco antes de Heloisa a academia abriu as portas para o jornalista Ruy Castro, outro de sua têmpora. O mineiro Ruy é um jornalista de formação, mantém coluna em jornal até hoje, que se tornou um dos maiores biógrafos do país. Seu texto é daqueles que os meninos e meninas na faculdade dizem ser preciso e saboroso.

Com sua vasta bagagem, enriqueceu a academia com autores e personagens importantes da cultura brasileira. Entram com ele um anjo pornográfico, Nelson Rodrigues, a estrela solitária de Garrincha, a cantora Carmen Miranda. E uma preciosa reconstituição histórica de épocas com seus livros sobre o cinema, a música popular a bossa nova, o samba canção. Ruy é um leitor apaixonado e tem o olhar atento sobre o país e o mundo.

Por último candidatou-se o quadrinista Mauricio de Sousa, o criador da turma da Mônica e do Cascão. Perdeu a eleição para o filólogo Ricardo Cavaliere, um respeitado professor de letras e lingüista, que já havia tentado outras vezes. Mauricio é da patota dos quadrinhos, que distraem e educam as crianças. Sérgio Augusto, em sua coluna no Estadão, escreveu que “nada me motivou mais a aprender a ler do que os gibis do imediato pós-guerra”, E assim também se passou comigo, do Mandrake ao Fantasma e o Globo Juvenil Mensal.

Uma academia que vai ganhando cara nova, apesar dos anacronismos. O fardão continua lá. O ridículo fardão trazido dos salões franceses está à espera da liberdade de se vestir de acordo com os nossos tempos. Com o que certamente concordaria o fundador da Casa, o romancista e poeta negro Joaquim Maria Machado de Assis, escritor mais consagrado do país.

De seu posto de observação, elegantemente sentado na entrada da Academia, avenida Presidente Wilson, centro do Rio, ele ergue a sobrancelha com altivez para saudar cada novo companheiro que passa. Com deferência especial para mulheres e negros. E pensa na alegria de Capitu, que desde sempre lhe pediu para encher a casa de mulheres.

Ana Maria Machado, Fernanda Montenegro e Rosiska Darcy lá se encontram. Clarice esnobou. Com o tempo livraram-se de Roberto Campos, Roberto Marinho, e até do general Aurélio de Lira Tavares, que assinou o AI-5 e em suas poesias usava o pseudônimo de Adelita. Dos presentes, que nem sempre comparecem ao Chá das quintas, Capitu já disse ao seu criador que gosta de Antonio Torres, pela cidade dos homens de pés redondos, e Ignácio de Loyola Brandão, censurado na ditadura por não verás pais nenhum como este. Ela ficou triste quando o Cony se despediu.

Muitos já foram barrados na porta por preconceito. Carolina Maria de Jesus não foi convidada A escritora negra Conceição Evaristo teve apenas um voto, perdeu a cadeira para Cacá Dieguez. Marilene Felinto, jornalista e escritora, ex-colunista da Folha, chamou a academia de “organismo anacrônico, agrupamento de egos deslumbrados, maioria de machos brancos e ricos”.

A ver as próximas vagas que podem definir o rumo. Meus candidatos são os dois maiores romancistas brasileiros da atualidade. Julián Fuks, de A resistência e A ocupação, e Itamar Vieira Jr., de Torto Arado, sucesso mundial. Seu novo livro, Salvar o fogo, antes de sair já vendeu na pré-venda quase 40 mil exemplares.

*Jornalista e escritor