ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
O peso do Alzheimer se junta à violência da impunidade
Publicado em 01/06/2023 às 13:28
Alterado em 01/06/2023 às 13:28
Ditaduras não acabam nunca. Prisão, tortura, exílio, solidão, ansiedade, esquecimento e impunidade deixam feridas traumáticas e imagens inesquecíveis entre os que foram atingidos pelas ondas de violência do terrorismo de Estado. Decorridos mais de 60 anos, o Instituto Vladimir Herzog lança uma campanha cobrando do governo eleito coragem para enfrentar a impunidade dos agentes criminosos. E adverte que para enfrentar a cultura da violência no Brasil é preciso derrotar a violência da impunidade.
Nesta teia de abusos e feridas herdada do regime autoritário, começam a ser percebidos sinais de outro elemento, de ação insidiosa e cruel, que age silenciosamente. A lenta e difusa progressão do Alzheimer entre homens e mulheres que enfrentaram e sofreram a dor da repressão em seus corpos. A ação da doença consiste em ir apagando aos poucos a história de lutas e resistência contida em suas memórias.
Pude sentir dolorosamente esta associação ao ler matéria publicada no jornal espanhol EL PAÍS, com o título “Primeiro Pinochet, depois o Alzheimer”, que faz a apresentação do documentário “Não são horas de esquecer,” filmado no México. O cineasta David Castañon investiga de forma delicada, por meio da música, da escrita, de sonhos e imagens, como o exílio e o mal de Alzheimer tornaram-se agentes do esquecimento de um casal de chilenos exilado no México.
Com o golpe de Pinochet, Jorge Osorio e Juana Ramos fugiram para o México com os filhos. A distância, o isolamento e a depressão, impulsionados pelo surgimento do Alzheimer, corroeram a memória das lutas e os ideais políticos da professora Juana. Com a doença, a vida do casal teve que ser repensada novamente. Jorge tem medo, parece inevitável que a professora acabe também por esquecê-lo, diz o jornalista Andrés Rodrigues, autor do texto.
Neste mundo que é real e irreal se passa o documentário No son horas de olvidar. Antes que o mal de Alzheimer se enraíze plenamente na mente de Juana, suas memórias, o exílio e a relação com Jorge são apresentados de uma forma surrealista. De uma maneira que sublinha também a perda de um sentimento de identidade e pertencimento, retirados de ambos durante o golpe de Pinochet, que completa 50 anos neste 2023. Uma ferida histórica que eles nunca esqueceram, explicou o diretor do filme.
Vivemos imersos em outra forma de Alzheimer, a de destruição da memória histórica. Grande parte dos brasileiros desconhece os horrores da ditadura. Para muitos não houve um golpe de Estado em 1964, seguido de uma ditadura que durou 21 anos. A tortura não foi elevada a uma prática institucionalizada, não houve assassinatos políticos nem há desaparecidos.
Não há, portanto, o que punir. O jornalista Wladimir Herzog, o Vlado, que dá nome ao Instituto, e o estudante de geologia Alexandre Vannucchi, o Minhoca, não foram assassinados pelo Estado ditatorial, que teve o major Brilhante Ustra no comando das engrenagens de medo e terror, com especialistas em choques elétricos e pau de arara.
Em outubro de 1975, Vlado apareceu numa foto como suicidado. Teria se enforcado na cela com seu cinto. E a morte de Vannucci, em março de 1973, foi revelada no alto de uma página de jornal, numa matéria sob o titulo “Subversivo tenta fugir mas morre atropelado por um caminhão” O caminhão que atropelou e matou o estudante estava dentro do Doicodi de São Paulo.
Na frente da luta contra a impunidade, Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, afirma que para enfrentar a cultura de violência no Brasil é preciso enfrentar a impunidade. Com esse objetivo, o Instituto entregou à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o relatório "Fortalecimento da Democracia: Monitoramento das Recomendações da Comissão Nacional da Verdade", feito em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Brasil.
Criada para investigar crimes da ditadura militar, a CNV conseguiu confirmar 434 mortes e desaparecimentos. No esforço de cobrar do Estado brasileiro, o Instituto propôs ao governo a criação de uma comissão interministerial com participação da sociedade civil, para que as recomendações da CNV sejam cumpridas.
O relatório dá ao presidente Lula e ao PT uma nova chance de reabrir a investigação destes crimes. Uma decisão de fundamental importância neste momento em que a intentona golpista de 8 de janeiro, com a participação de oficiais das Forças Armadas, esta sendo investigada pelo STF e por uma CPI na Câmara.
A questão da impunidade é uma doença antiga, marca registrada do Brasil. Para romper com a cultura do Alzheimer, Lula precisa de coragem para propor à sociedade civil e às forças progressistas um compromisso de punição aos torturadores do passado e do presente, crucial para a garantia do ar que respiramos numa democracia.
Jornalista e escritor