As dores de uma despedida de velhos companheiros de vida
Foi preciso coragem. Levei meses para decidir, conduzi o processo por etapas, com a ajuda de artifícios e artimanhas. Primeiro, fiz uma cuidadosa seleção prévia. Retirei uns 60 exemplares das duas estantes que ficam no escritório e levei para o quartinho de empregada, onde mantenho um improvisado ateliê e uma espécie de depósito das coisas que não sei mais o que fazer com elas. Quase rejeitadas, aquilo é a antecâmara do cadafalso. Supostamente estão condenadas, mas o martelo ainda não foi batido.
Vai quê de repente ainda posso salvar um ou outro exemplar, olhar para a sua lombada familiar e reconhecer ali um grande amor do passado, sacá-lo rapidamente da estante de metal e levá-lo de volta para a biblioteca principal, no escritório. Por isso agi subliminarmente de forma traiçoeira, de modo que não tivesse tempo de voltar atrás no último minuto. Há um estranho fascínio entre nós, decorrente do contato e do manuseio, de todas aquelas histórias que eles trazem e contam em suas páginas impressas.
Mas já que tomei uma decisão preciso agir. Procurei pelo cartão da Livraria 2005, um Sebo situado no velho Shopping de Antiguidades de Copacabana, que compra e recebe livros, discos, CDs e DVDs.
Objetos usados e manuseados, desde que em bom estado de conservação, conforme adverte o cartão. Decidi de antemão que iria doar e não vender. Negociar preço de cada um seria um ato vil de minha parte, pois se trata de objetos de estimação que me acompanham há anos. Com vários deles dormi abraçado na cama, com outros me enrosquei no sofá.
Deram-me emoções fortes, tristezas e alegrias, deleites e prazeres inusitados. Ensinaram-me caminhos, discutiram comigo idéias e ideologias, me fizeram rir e chorar, transformaram-se numa extensão de minha memória e imaginação. Mas ficaram para trás no tempo muitos deles, devo reconhecer. Com alguns viajei até as estepes russas, depois de passar por serras cubanas. Até em campos de concentração estivemos, debaixo de neve. Comemoramos vitórias históricas, como a que levou os bolcheviques ao poder, naqueles dez dias que abalaram o mundo.
Vários de seus autores me recordam em suas páginas que sofremos um golpe militar violento e cruel, que cortou nossos sonhos e mudou nosso destino. São volumes de história, contos, crônicas, biografias, mais de não ficção do que ficção, registros de viagens, documentos escritos nos cárceres, um mergulho no inferno. Alguns em formato de bolso, revistas, denúncias de atentados à liberdade, teses da igreja contra o autoritarismo, manifestos saídos dos porões, revoltas de marinheiros, o despontar de jacarés e lobisomens. Toda uma época ali concentrada, sob o viés de um homem de esquerda.
Com os indefesos objetos colocados em três sacolas e o telefone fixo na mão, disquei e anunciei ao meu interlocutor que sou um professor e jornalista que quer fazer uma doação de livros antigos. Uma coletânea de história, política, documentos, biografias, em sua maioria registros das lutas travadas contra a ditadura que se instalou em 1964. Polido, o homem falou ser de seu interesse, agradeceu e pediu o meu endereço. Logo depois estava aqui o seu funcionário, empurrando um carrinho.
Ao lhe entregar as sacolas notei que estava deixando na estante uma coletânea de 12 volumes da Enciclopédia Larousse Cultural. Sempre a tratei com o maior carinho e respeito, embora a consultasse pouco. Indaguei ao homem se era de seu interesse. Ele disse que podia levar, mas que hoje não tem mais valor nenhum. Você pode perguntar ao Google e tem resposta para tudo, com fotos e desenhos.
Antes, já havia oferecido aos meus netos, que torceram o nariz. Não sabiam bem pra que serviam aqueles grandes volumes encadernados. Melhor então levar, disse ao homem, que caminhou até a estante e juntou a Larousse Cultural.
Não sei em mãos de quem vão parar cada um desses livros. Se é que vão, serão do interesse dos leitores atuais? Ainda mais que dispostos no ambiente reservado de um Sebo. Os livros têm o poder de mudar vidas. É bom que estes possam sair da casa onde passaram anos adormecidos nas estantes, ao lado de vizinhos talvez indesejáveis, e circulem um pouco, sintam novos ares.
De modo que peço desculpas aos amigos que me fizeram dedicatórias. Não deu tempo para cuidar de tudo, e é bem provável que ao folhear seu exemplar o ilustre novo leitor se depare com uma saudação e um abraço a este colunista. Já aconteceu comigo uma vez. Numa feirinha de rua, abri o romance de um amigo escritor e fui surpreendido com seu autógrafo a outro amigo comum. Exemplar autografado devia custar mais caro. Peço também desculpas aos que não tive tempo ou curiosidade para ler. São filhos que saem de casa virgens. Sentem, mas fingem não ter vida própria.
Já devo ir começando a me preparar para uma nova despedida, de uma segunda coleção que certamente virá. O apego será maior, a seleção mais difícil e as dores da despedida darão para fazer um seriado de tevê. Ou a letra de um sentido tango, como o cantado por Gardel, “Adiós muchados compañeros de mi vida”.
Há neste pacote que acabo de despachar, meio que como um estranho no ninho, um Prêmio Nobel de Literatura. “A honra perdida de Katharina Blum”, do alemão Heinrich Böll. Uma indicação do Milan Kundera. Estranho porque um romance, cercado de literatura política às vezes panfletária. Romance que, por sinal comprei num sebo, para onde ele afinal voltará.
*Jornalista e escritor