Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

ducaldas@terra.com.br

ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Quem tem medo do velho fantasma do comunismo?

Publicado em 06/07/2023 às 22:00

Alterado em 06/07/2023 às 22:00

Na guerra fria, tanques e foguetes desfilam em frente ao Kremlin, em Moscou Reprodução

A pergunta foi feita pelo Datafolha numa pesquisa em que ouviu 2.010 pessoas com mais de 16 anos em 112 municípios. A resposta saiu na primeira página do jornal “Folha de S. Paulo”, (domingo 2/07), afirmando que a maioria dos brasileiros, 52%, acredita que o Brasil corre o risco de virar um país comunista. Acreditem. A questão é esdrúxula e extemporânea. Estamos no início da era da inteligência artificial, século 21, e a Guerra Fria acabou nos anos 1990 do século passado.

Da mesma forma, por inoportuno, também poderia ter se perguntado ao distraído brasi-leiro se ele tem medo do “lobo mau” ou do “bicho papão”, que numa época foram usa-dos como espantalhos para demonizar os comunistas. Ou talvez, ainda, associar o tema à peça “Quem tem medo de Virginia Woolf?”, do americano Edward Albee, mestre do teatro do absurdo, levada ao cinema com grande sucesso na década de 1960, com Eliza-beth Taylor e Richard Burton nos papeis principais.

Diante de tão bizarra questão, a pessoa abordada na rua em plena atividade, ou toman-do um cafezinho no balcão de um bar, deve ter perguntado de volta, com uma expressão embasbacada: “Medo de quem? Do comunismo, mas o que é isso?” Vai que o entrevis-tador tenha que explicar e também não saiba do se trata. A pergunta fica sem resposta.

Segundo o Datafolha, 52% dos entrevistados concordaram com a afirmação acerca do risco de o Brasil adotar um regime comunista. Ainda que a questão posta pela pesquisa seja dúbia e tenha sido feita para confundir, numa tentativa de juntar o regime comunis-ta ao candidato Lula do PT, uma vez que esta foi uma das principais bandeiras do bol-sonarismo para atacar o candidato petista.

A formulação evidencia que o questionário foi feito de uma forma a falsear a realidade, ao mesmo tempo em que exigia do pesquisador do Datafolha um verdadeiro malabaris-mo verbal para fazer-se entender pelo eleitor. Afinal, o que o instituto pretendeu alcan-çar com a pergunta? Boa coisa para o recém-eleito presidente Lula não foi. Lula nunca foi comunista, jamais poderia ser acusado de “comer criancinhas”, como os velhos co-munas de antigamente eram apresentados em charges e peças publicitárias do governo do Tio Sam

Uma questão típica dos tempos da guerra fria, que teve inÍcio após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) com a derrota da Alemanha nazista, Travou-se uma acirrada dispu-ta ideológica, política e militar entre os países capitalistas e socialistas, com a ameaça nuclear parando sobre nossas cabeças. Do ponto de vista ocidental, os comunistas eram tidos como maus e viviam confinados numa cortina de ferro. A guerra fria acabou com queda do muro de Berlim, em 1989, e a subseqüente desintegração da União Soviética, em 1991.

A grande maioria de nossos eleitores muito pouco ou quase nada sabe disto. Guerra fria é um filme de mistério passado no Ártico, com os ursos caminhando na neve. Fiz por conta própria uma pesquisa nas proximidades de bancas de jornais, com motoristas de táxi e junto a meus colegas de Pilates. Constatei, para minha surpresa, que mesmo os mais velhos, acima de 50 anos, têm uma vaga idéia do comunismo e do significado da guerra fria. Como tirar daí a conclusão de as pessoas têm medo de comunismo?

Poderiam ter medo também de Virginia Woolf, da peça de Albee, conhecido por seus dramas psicológicos satíricos, nos quais os personagens agem de maneira absurda. Sua peça é um ataque ao triunfalismo americano. Virginia Woolf foi uma escritora brilhante e ardorosa defensora do direito das mulheres, que procurou viver sem falsas ilusões. Ela não está na peça. O título, encontrado por acaso, assume o contexto de uma metáfora como se a personagem, uma professora alcoólatra, tivesse medo de encarar a realidade.

As perguntas da pesquisa Datafolha deveriam ser outras. O ex-presidente foi condena-do por ter atacado o sistema eleitoral brasileiro numa reunião com embaixadores estran-geiros, quando buscava se perpetuar no poder. Diante dos crimes que cometeu, é pouco para um extremista de direita que, nos quatro anos em que governou o Brasil, atacou vacinas, incentivou a invasão criminosa de terras indígenas, acelerou a destruição da Amazônia, lançou ataques contra instituições, tentou destruir a credibilidade das urnas eletrônicas e incentivou golpes de estado.

Por que não indagar dos eleitores se ficar oito anos fora da disputa eleitoral é muito pouco para tantos crimes? Insistir na assombração do temor ao comunismo só contribui para enfraquecer as instituições da democracia, que o extremista de direita tanto minou e tentou destruir com seus atos insanos.

*Jornalista e escritor

 

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