Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

ducaldas@terra.com.br

ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

O romance de Kundera trouxe a liberdade política e amorosa.

Publicado em 20/07/2023 às 13:18

Alterado em 20/07/2023 às 15:58

Não o encontrei nenhuma vez, mas aprendi algumas coisas com Milan Kundera, o novelista tcheco que morreu na última terça, dia 11 de julho. Primeiro devo falar de sua arte romanesca incomparável, escreveu uma série de romances que são lidos com prazer até hoje. Neles, descobri a palavra kitsch, que designa a vulgaridade e o mau gosto, quase sempre associada por ele, de uma forma irônica, a um acontecimento ocorrido no regime comunista soviético. Por fim, descobri a Boêmia, transitei pelas ruas da cidade velha de Praga admirando seus palácios e ouvindo o poema sinfônico Moldava, de Smetana, que acompanha o rio por suas cordilheiras encachoeiradas.

Creio sinceramente que não tenha havido na minha geração - aqui situada no momento pós-ditadura, início do processo de abertura - nenhum jovem chegado às letras e sonhando a política, seja candidato a jornalista ou a escritor, que não tenha se encantado com o estilo irônico e provocativo de Milan Kundera. O romancista explodiu no Brasil com a “Insustentável leveza do ser”, meados da década de 80 do século que passou. Editado pela Nova Fronteira, o livro vendeu mais de 400 mil exemplares, chegando a 62ª edição.

Em seu romance existencial e ensaístico, Kundera apresentou a seus leitores a sabedoria da incerteza, esconjurou os dogmas, viajou pelas sendas do amor e do erotismo e introduziu a dúvida nos pensamentos de seus personagens. Numa Praga embalada pela Primavera de 68, antes da chegada dos tanques soviéticos, o trio Tomas, Teresa e Sabina agia com liberdade para decidir seu destino, em meio a um cenário político opressivo e sombrio.

Macaque in the trees
Milan Kundera (Foto: Arquivo)

Um romance seguido de vários outros, em que o autor nos premia com a possibilidade, sustentável ou não, da liberdade política e amorosa, duas conquistas fundamentais para uma vida em liberdade, que estávamos começando a desfrutar no Brasil com a término da ditadura. A possibilidade do triunfo da democracia e da inteligência sobre a tirania, com a junção destes dois valores fundamentais, o exercício livre da política e da relação amorosa.

Sem tomar partido, foi um critico amargo da esquerda comunista e de seus dogmas, certezas absolutas e julgamentos morais. Dos desfiles militares na praça Vermelha aos cartazes com a exibição da foice do martelo, tudo era kitsch para ele. Seus livros, entre eles “Imortalidade” e “Risíveis amores”, tinham como cenário a Europa conflagrada, em especial a Central, e pano de fundo romanesco os grandes temas existenciais do amor, da sexualidade, a traição, a morte, a memória e o esquecimento, temperados com humor e ironia. Como n“O Livro do riso e do esquecimento” um olhar atormentado sobre o cotidiano da Tchecoslováquia após a invasão de 1968. A desorientação dos intelectuais, desilusões dos jovens, separação dos casais, a prepotência dos líderes políticos.

Kundera se despediu aos 94 anos, esquecido e recluso, ao lado da inseparável Vera, sua companheira de toda a vida, em um apartamento na rive gauche parisiense, onde se confinaram. Foi o escritor mais influente e cortejado de sua época. Seu best seller mundial foi transformado num filme de grande sucesso, dirigido por Philip Kaufman, com Juliette Binoche e Daniel Day-Lewis. Ele não gostou.

Altivo e arredio, controlava sua obra com um rigor stalinista. Discutia com tradutores, não gostava de dar entrevistas, de falar do seu passado. Dizia que o escritor deve eclipsar-se atrás de sua obra, que sua vida não tem nenhum interesse, o que conta na biografia é o que ele deixou escrito.

Exilado em Paris, Kundera detestava o passado que queria esconder. Nascido na Tchecoslováquia comunista foi compulsoriamente filiado ao Partido na juventude. Num país de tradição musical clássica, estudou música, aprendeu a tocar flauta e foi um péssimo poeta, considerado stalinista. Nos arquivos de segurança do Estado, algum inimigo encontrou um documento em que ele denunciava um rival opositor.

O jovem Milan foi condenado a 22 anos de prisão. Fugiu do país após a primavera interrompida. Em 1968 adotou a cidadania e a língua francesa e recomeçou a escrever. Só rompeu o silencio a que se impôs no exílio para negar a acusação de dedo duro. O regime comunista proibiu seus livros, expulsou-o do Partido e o espionou durante anos.

A trajetória de Kundera me levou a recordar de outro grande escritor e militante político europeu, naquele momento de redescobertas para mim, recém saído de dois anos e meio de cárcere na ditadura. Os dois intelectuais formados em sua origem na promessa de redenção comunista, que dolorosamente foi parar nos gulags, com passagens pela guerra e o horror dos campos de concentração.

Reencontrei o espanhol Jorge Semprun em sua “Autobiografia de Federico Sanchez”, seu codinome no Partido, um relato apaixonado que li em êxtase. Depois peguei “Um belo domingo”, um dos livros mais fascinantes que li, embora passado dentro do campo nazista de Buchenwald. Semprun teve uma longa militância no PCE até chegar á direção e ser expulso numa reunião do Comitê Central em Praga. Lá mesmo, na Praga do Kundera, com Dolores Ibárruri, La Pasionaria, chamando-o de “intelectual cabeça de vento”.

A obsessão de Kundera era o romance, a arte do romance, título de um dos seus três ensaios em que faz uma análise da estética romanesca e sua evolução histórica, tendo como questão central a pergunta angustiante: sobreviverá o romance num mundo oposto ao seu, tão contrário aos seus princípios básicos? Em sua legado, os ensaios ocupam um lugar privilegiado ao lado das ficções. “Arte do romance”, “Testamentos traídos” e “A cortina” são reflexões de um erudito sobre o lugar do romance em nosso mundo

É conhecida sua frase de que o romancista não deve prestar contas a míngüem, exceto a Cervantes. Tudo indica o romance, como Milan Kundera imaginou e amou, não chegará a este mundo da inteligência artificial e etcétera e tal.

*Jornalista e escritor