As cartas do quarteto criador do Boom literário latino americano

Por ÁLVARO CALDAS*

Numa América Latina convulsionada na década de 1960. quatro jovens escritores e viajantes em pleno processo de criação começam a trocar cartas entre si, ao mesmo tempo em que seus livros despontam para o sucesso. Tornaram-se amigos e estavam a caminho de produzir uma fantástica revolução literária, que sacudiu o Continente e o mundo internacional da ficção.

Deixaram uma correspondência impregnada por confissões, divergências políticas e obsessões pessoais, marcantes no inicio de uma amizade durou mais de meio século. Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Mario Vargas Lhosa e Carlos Fuentes formaram um quarteto que reinventou a literatura de ficção, a partir de seus livros mais famosos: “Cem anos de Solidão”, “O Jogo da Amarelinha”, “A cidade e os cachorros” e “A morte de Artemio Cruz.”

Pela primeira vez todas suas cartas acabam de ser reunidas em um livro pela Editora espanhola Alfaguara: Las Cartas del Boom, que já pode ser encontrado em livrarias da Espanha, México e Colômbia. No Brasil, ainda estamos à espera de que uma editora se manifeste. Por enquanto, pode ser baixado pelo Kindle a R$ 68,29, ou adquirido pela internet o volume impresso por R$131,39.

Toda essa aventura epistolar começou quando o mexicano Carlos Fuentes escreveu a primeira carta para o argentino Julio Cortázar, num momento em que os dois estavam começando a ter uma relação pessoal e profissional. Aos poucos, foram se aproximando os outros dois, o colombiano Garcia Márques e o peruano Vargas Lhosa, e o intercambio cresceu e se ramificou. Os quatro juntos só se encontraram uma vez.

Ensaísta e diplomata, admirador de Machado de Assis, Fuentes sabia que essa correspondência um dia teria um valor especial, por isso guardou boa parte do que escreveu e recebeu de seus amigos. Segundo o “El Paíz,” foi o grande impulsionador do Boom. “Devemos a ele a existência deste livro”, diz o escritor mexicano Javier Munguía, um dos co-editores. “ Fuentes guardou tudo, como um visionário que confia na sua grandeza e na de seus amigos. Estava ciente de que esse arquivo poderia ser importante no futuro".

O livro contém 207 cartas, que começaram a circular em 1955, quando Fuentes e Cortázar se cruzaram numa livraria, e vão até 2012, quando o mexicano comemora os 85 anos do colombiano numa carta carinhosa, em que se despede como “seu amigo de sempre”. Trata-se de algo extraordinário, ter sido preservada a correspondência cruzada entre os quatro novelistas mais notáveis de sua geração, que se tornaram ao mesmo tempo grandes escritores e amigos.

Com a ressalva necessária de que o movimento foi mais amplo e não se limitou a esses quatro nomes, mas sabendo ao mesmo tempo não se pode falar em Boom sem começar por eles. Nenhum deles havia alcançado a glória internacional, mas logo iniciaram a publicação de suas obras-primas: Artemio Cruz e Terra nostra, de Fuentes; As armas secretas, Cortázar; Conversa na catedral, Llosa; O amor nos tempos de cólera, de Gabo

Assombraram o mundo, ganharam prêmios como o Miguel Cervantes e Príncipe de Astúrias. Dois deles levaram o Nobel, Gabo e Llosa, que os outros dois certamente também mereceram.
No centro desta aproximação não só política como literária, estava Cuba e os barbudos de Sierra Maestra, pontos de exaltação apaixonada e de divergências acirradas entre eles. Sem a revolução cubana, que surge logo nas primeiras cartas, é impossível pensar no movimento que criaram. Tal como a revolução tentou transformar a realidade, os grandes novelistas desta geração tentaram reescrever a história da ficção.

Em 1971, Cortazar já via o divórcio entre os amigos como algo inevitável: anotou que sentiu “a sensação de que coisas que amo muito podem quebrar amizades de muitos anos e afetos profundos” Em carta a Llosa, em 1969, escreveu que “sua conduta colocou seus amigos em uma situação mais do que incômoda em Havana”, depois que o escritor peruano se recusou a visitar a ilha para um evento cultural. O regime de Fidel Castro começava a demonstrar seu autoritarismo para com os escritores, questão política que levaria a brigas irreconciliáveis.

Meu preferido no quarteto é o argentino Julio Cortázar, amante do box e do jazz. “Las Armas Secretas é o mais excelente volume de contos já escrito e publicado na América Latina”, escreveu um emocionado Fuentes a Cortázar, em 1962, sobre o novo livro do argentino. São seis relatos fantásticos, embora na maioria das vezes o leitor, envolvido pela aparente trivialidade das histórias, nem sempre perceba de imediato.

“As babas do Diabo” que inspirou o Blow-up, de Antonioni e “O perseguidor”, o ponto mais elevado de sua criação, estão entre os sete contos deste livro editado aqui pela Jose Olympio. Os críticos reconhecem nele alguns dos melhores contos da literatura hipano americana do século XX. Nada fácil, se vistos num celeiro em que estão grandes mestres do gênero, como Borges, Onetti e Juan Rulfo.

*Jornalista e escritor