Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Rigorosa e implacável, Dilma sobreviveu aos ataques de seu tempo

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Publicado em 25/08/2023 às 11:30

Alterado em 25/08/2023 às 11:33

Dilma no Brics Reprodução

A foto me impactou. Fixei o olhar e imediatamente me lembrei de outra, 50 anos atrás. Na tela à minha frente, a foto da ex-presidente Dilma Rousseff publicada esta semana nos jornais. Ela se encontra na África do Sul, presidindo a reunião do Brics. O título da matéria destaca sua afirmação de que “a hegemonia do dólar precisa acabar porque é um é um privilegio absurdo.”

O que me impressionou foi o close em seu rosto, a ênfase com que ela se manifesta contraindo os músculos da face, fazendo sobressair as marcas e rugas que se formaram sobre os lábios e ao lado dos olhos. Vi uma altiva e determinada senhora, pronta para mais uma batalha, a dos países que buscam uma alternativa no comércio internacional com a expansão de um novo banco do desenvolvimento.

Sou do tempo em que Dilma era uma menina guerrilheira. A memória logo encontrou outra foto dela marcante, tirada durante audiência num Tribunal militar. Ela com 22 anos, magrinha e de cabelinho curto, olhando com serenidade e firmeza para a frente, enquanto os juízes militares, sentados na bancada, escondem os rostos com as mãos. De vergonha, deve ser. Ela estava voltando de 22 dias de solitária e tortura.

Comparei as duas fotos. A mesma mulher sem dúvida, agora com 75 anos. O que logo me chamou a atenção foi a firmeza e a convicção com que ela se exprime, gesticulando forte com as mãos. Sempre foi assim. Sua presença causa impacto pela sinceridade com que se expõe. Trata-se de uma dama estoica e digna, já chamada de dama de ferro sem ter nada a ver com Margareth Thatcher, a baronesa inglesa que ostentou o titulo.

Ela é a antiliberal, antimercado, a anti-Thatcher por natureza. Tem um temperamento forte, mas revestido por camadas e maneiras diversas de ver o mundo em que percepções sociais se misturam com ideais de transformação política. Que estão na base do projeto revolucionário que marcou sua adolescência e início da vida adulta.

Até chegar à presidência de um banco multilateral do porte do Brics, que se propõe a mudar a economia global levantantando capital em moedas locais, acumulou em sua bagagem passagens marcantes na vida política e econômica brasileira, no século que passou e no inicio deste. Contudo, paira um sentimento dominante de que por alguma razão não foi devidamente valorizada, que não se faz justiça a ela em seu próprio país. Sua reputação maior é fora do Brasil, num contexto mais amplo de acontecimentos históricos, sociais, políticos e culturais.

Não obteve o reconhecimento que merece. A elite financeira e tecnocrática dominante a detesta, a mídia tudo faz para ignorá-la. Dizem intramuros que é antipática. Por seus feitos e sua liderança foi abrindo as portas da História. Se tivéssemos uma revista Times aqui, seria a personalidade do ano. O que a fortaleceu, sobretudo, foi ter sobrevivido ao longo dos anos aos ataques ao seu trabalho e à sua pessoa.
Com Lula, que a inventou e lhe deu projeção nacional, foi chamada de poste. Também com Lula virou a mãe do PAC e foi eleita para sucedê-lo. Em um momento, em 2008, humilhou de forma magistral e educativa um senador da república integrante da base da ditadura, José Agripino Maia, que a repreendeu por ter dito numa entrevista que mentira nos interrogatórios nas salas de tortura.

Dilma durante interrogatorio na Auditoria militar
Arquivo

Ministra-chefe da Casa Civil de Lula, Dilma o desmascarou por comparar ditadura com democracia, “o que só pode partir de quem não dá valor á democracia. Isto faz parte de minha biografia, ilustre senador, e tenho orgulho de ter mentido para salvar a vida de amigos. Não se dialoga com pau de arara ou choques elétricos.”

Antes, havia passado uma temporada de três anos na torre das Donzelas, o presídio Tiradentes em São Paulo. Depois que saiu, voltou a estudar e fez mestrado e doutorado de Economia na Unicamp. Conheci-a nesta fase. Já havíamos andados próximos nos anos de confrontos mas em organizações políticas diferentes. Dilma veio de Minas pela Colina e depois passou para a Var Palmares.

Logo que saí da cadeia fiz uma viagem para retomar a vida e festejar os ares da liberdade. A bordo de minha Brasília fui a Porto Alegre, e em seguida Montevidéu, com a Suely e a amiga Fernanda. Ficamos na casa da Dilma e do Carlos Araújo, seu companheiro. Uma casa iluminada à beira do rio, com uma luz clara, despojada e mobiliada com modéstia. Ela, uma mulher educada e formal. Uma noite foi para a cozinha e preparou o jantar. No outro dia ficou fechada na biblioteca estudando.

Nestes 70 anos o mundo rodou, caiu na ribanceira e se reergueu várias vezes. O que está acontecendo de novo agora no Brasil, com Lula em seu terceiro mandato. O trem da história que saiu de Minas passou por varias estações. A guerrilheira filha de pai emigrante búlgaro e mãe professora conseguiu o feito extraordinário, numa mesma geração, de sair viva dos cárceres da ditadura e se eleger presidente da República.

Nesta semana ela também foi notícia pela absolvição definitiva no caso das pedaladas fiscais, usadas para o golpe parlamentar que a tirou do poder em 2016. Decisão unânime do Tribunal Regional Federal, de Brasília. As qualidades de Dilma são a disciplina, a sinceridade e o rigor. Chamam-na de durona, costuma ser implacável. É dotada de uma resistência estoica à tentação de adulterar ou enfeitar os fatos. A aura que se cria em torno de si é fruto de muita perseverança e de uma autonomia inquebrável, raras de serem encontradas por aí.

*Jornalista e escritor

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