Vasco abre alas para exaltar a mística dos Camisas Negras

Por ÁLVARO CALDAS

A cruz de malta sempre esteve lá no alto do peito, sobranceira, mas qual a cor da camisa do Vasco e qual o tamanho de sua torcida? Neste ano de comemoração do centenário dos Camisas Negras, os jogadores voltaram a vestir o uniforme preto numa homenagem ao grande feito de 1923, quando o Vasco foi campeão carioca e se recusou a jogar a divisão principal, no ano seguinte, sem os seus jogadores negros.

A discriminação não era apenas pela cor, mas também porque seus jogadores vinham de camadas populares, constituindo uma maioria de pretos, operários e alguns analfabetos. Um marco na história do esporte, que nasceu preconceituoso, branco e elitista. E motivo de orgulho para sua torcida.

 

Ao longo dos seus 125 anos de história, o Clube de Regatas Vasco da Gama foi campeão Sul-americano, da Libertadores, da Copa do Brasil, quatro vezes do Brasileirão e outras tantas do Carioca. Rebaixado algumas vezes, o time ensaia agora uma recuperação, valendo-se da mística da camisa negra para permanecer na série A. Mas nenhuma conquista no campo tem o mesmo peso de uma carta que está exposta na sala de troféus, em São Januário.

Em 7 de abril de 1924, o então presidente, José Augusto Prestes, assinou o manifesto que ficou conhecido como a Resposta Histórica, comunicando que o Vasco se recusaria a disputar a divisão principal do Rio de Janeiro sem seus jogadores negros, exigência imposta pelos dirigentes da época. Para eles, “os atletas não reuniam condições sociais apropriadas ao convívio esportivo.”

A Liga era dominada pelos cartolas do Flamengo, Fluminense, Botafogo e América. Considerada uma insubordinação inaceitável, naqueles tempos em que o futebol de elite era privilégio dos brancos, o ato ganhou dimensão simbólica e transformou o clube cruzmaltino numa espécie de estandarte e pioneiro da luta contra o racismo no esporte brasileiro.

Torcer por um time de futebol é uma escolha para toda a vida. Quem já fez a sua sabe disto. O poeta Carlos Drummond de Andrade foi um discreto e apaixonado torcedor vascaíno durante a vida toda. Paixão que começou em Itabira, Minas. Escreveu: “Não digo que sou um vascaíno doente, pois doente é quem não é vascaíno.”

No livro “Quando é dia de futebol”, editado por seus netos, saudou com esses versos o Gigante da Colina. “E viva, viva o Vasco: o sofrimento há de fugir, se o ataque lavra um tento. Time, torcida, em coro, neste instante, vamos gritar: Casaca! Ao Almirante.” Os sambistas Paulinho da Viola, Nelson Sargento e a cantora Teresa Cristina estão entre outros milhares de vascaínos no mundo do samba, dominado por artistas negros. Nelson Sargento imortalizou a luta antirracista do Vasco em seu samba “Casaca, casaca”: “Vasco da Gama baniu o preconceito, em nome do direito”.

 

Comigo tudo começou num domingo à tarde. Fui com meu irmão Valdo à matinê do Cine Teatro Goiânia, provavelmente para ver um seriado de Flash Gordon ou um filme do famoso cowboy Tom Mix. Voltamos apressados para casa. Dona Josefa tinha ficado com o rádio ligado para ouvir a final do campeonato carioca de 1950, Vasco e América, disputado em 28 de janeiro de 1951.

Do jogo sairia o primeiro campeão do Maracanã, estádio inaugurado meses antes para a Copa do Mundo. Pulei o muro da casa, atravessei o quintal correndo e abri a porta da copa. Minha mãe aumentou o volume do rádio e anunciou: Vasco 2 a 1, gols do Ademir Menezes.

“Oi zum-zum-zum-zum, Vasco 2 a 1. Ademir pegou a bola e desapareceu/ foi mais um campeonato que o Vasco venceu”. A multidão de mais de 100 mil pessoas improvisou uma paródia de um grande sucesso do carnaval de 51. Começava alí, aos dez anos, em Goiânia, a conturbada aventura do menino Du com o Gigante da Colina. Seu irmão se tornaria flamenguista.

Uma paixão que dura mais de 70 anos, certamente a maior fidelidade de toda minha vida, que não será rompida nem com um novo rebaixamento. Abalos houve, já ruminei dias seguidos, excomunguei os feitos do Almirante Vasco da Gama cantados por Camões, coloquei luto no quadro do Esquadrão que tenho na parede de meu escritório, em que Ademir está agachado entre Heleno de Freitas e Chico, com a careca do massagista Mário Américo ao lado.

Meu amigo Trajano há de entender. Se em 1950 o América tinha um timaço, Osvaldinho, Natalino, Maneco, Dimas e Ranulfo, o Vasco era a base da seleção de 50, o tal Expresso da Vitória. À frente, o queixada Ademir, que os jornais chamavam de “azougue”, pela rapidez fulminante com que invadia a área. No gol, o negro Barbosa, na linha média pontificava Danilo, um príncipe de olhar triste, e mais Eli, Maneca e o desconcertante Ipojucan. Jogador de técnica refinada, 1.87m de altura, manhoso, lento. Deixou Ademir na cara do goleiro Osni no gol da vitória do Vasco.

Nunca mais desgrudei do Gigante. Dos técnicos, tive especial carinho por dois, o negro com ares de filósofo Gentil Cardoso, que erguia a voz pelo megafone, nos treinos, para advertir a rapaziada de que quem desloca tem preferência. E o aristocrata e intelectual mineiro Martin Francisco Ribeiro de Andrada, que gostava de sentar no vestiário depois do treino, com uma garrafa de Red 8 anos em cima da mesa, para uma conversa sobre táticas, a armação do time no 4-2-4.

Um dia treinei em São Januário, Quem me escalou, num coletivo no meio da semana, foi o repórter Dácio Malandro, setorista do JB no Vasco. Só que eu estava no time da penitenciária, trancafiado na Vila Militar, regimento Sampaio, cumprindo pena por subversão na ditadura. E o Dácio, meu companheiro de redação, escalou um novato Álvaro Caldas na lateral esquerda do time reserva. Deu no jornal.

Logo que cheguei ao Rio, São Januário foi meu destino todos os domingos. Quando o salário de repórter deu, comprei um fusquinha vermelho financiado, apelidado de “Gigante” pelo adesivo que ostentava no vidro traseiro. Teve uma respeitável trajetória entre os grupos de esquerda no Rio nos anos 60. Participou de pichações, transportou militantes clandestinos, levou panfletos para porta de fábrica, até que um dia bateram com ele e o bravo Gigante da Colina foi arrastado, com os pneus arriados, para o quartel da Barão de Mesquita. Me fez companhia.

No uniforme número 3 da equipe para a temporada de 2023/2024, o Vasco reproduz a camisa dos jogadores que venceram o Campeonato Carioca de 1923. Com os nomes dos 11 titulares campeões, a data e uma estrela. Uma campanha espetacular, com 11 vitórias, dois empates e uma derrota. A equipe era formada por atletas pretos, pobres e operários, em sua maioria. A conquista foi decisiva para incluir jogadores negros nos times de futebol da primeira divisão no país.

Para os supersticiosos, uma curiosidade. O time que venceu a série B do estadual de 1922, que chegou à elite na temporada seguinte, era comandado pelo técnico uruguaio Ramón Platero. Venceu os três maiores rivais no primeiro turno e arrancou rumo ao titulo. A maioria dos craques era de negros e analfabetos. No clube, aprendiam a ler e escrever.

O técnico que comanda hoje o time do Vasco em sua reação para se manter na série A, é o argentino Ramón Diáz. Dois Ramones, um uruguaio, outro argentino. Quem sabe isso pode dar liga. E um tango, para o baile dos camisas negras.