ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
Escola de tortura da ditadura argentina vira patrimônio mundial
Publicado em 05/10/2023 às 14:15
A construção do museu se deu por etapas. Intimada por um decreto do presidente Néstor Kirchner, em 2004, a Marinha foi obrigada a deixar as instalações. Antes de sair, destruiu salas e esvaziou completamente o complexo de edifícios. Ficaram preservadas apenas algumas marcas e inscrições feitas pelos prisioneiros nas paredes dos cômodos e banheiros. Nelas, foram encontrados nomes de familiares, números de telefone, iniciais de partidos políticos, datas, desenhos e frases inacabadas difíceis de decifrar.
Ali, no bairro de Nuñes, ao norte de Buenos Aires, próximo da Avenida Del Libertador, ergue-se a imponente construção da Escola de Mecânica da Armada, que acaba de ser declarada pela Unesco Patrimônio Mundial Cultural e Natural. A inclusão do Museu Memorial da ex-Esma, um complexo de edifícios de três andares, sótão e porão, na lista de espaços históricos a serem preservados, é um marco na condenação ao terrorismo de Estado, do qual a casa é símbolo.
Ao mesmo tempo, reconhece e presta uma homenagem aos milhares de desaparecidos políticos da América Latina nos anos 1960/70 do século passado - cujas histórias ainda continuam soterradas - período em que os países do Continente foram dominados por ditaduras de extrema direita.
Pelo seu poder de extermínio e desaparecimento de pessoas, a Escola tornou-se o centro clandestino de terror mais emblemático da América do Sul. Na Argentina foram identificadas mais de 700 deles. No Brasil, as casas da morte se espalharam em instalações de Delegacias de Polícia Política, aparelhos clandestinos e quarteis do Exercito, que receberam o nome de Doi Codi, sigla do jargão militar da época. Seus antecedentes vêm dos campos de concentração criados na Europa pelo regime nazista da Alemanha.
A iniciativa de propor a declaração foi da Secretaria dos Direitos Humanos da Argentina, que iniciou o processo de apresentação da candidatura em 2015: “Pela dimensão construtiva e geográfica, localização na cidade, pela convivência dos perpetradores com as vítimas e pelas peculiaridades de concentração, confinamento e extermínio.” A petição registrou como antecedentes espaços como o campo de extermínio de Auschwitz, na Polónia, e o Memorial da Paz, de Hiroshima
No Brasil ditatorial a tortura também reinou, com as suas casas e imóveis clandestinos de mortos e desaparecidos, mas estamos longe de apresentar uma candidatura. Por temor ao poder militar, os governos democráticos não o enfrentaram. Os Doicodis do Rio e São Paulo e a Casa da Morte, de Petrópolis, reúnem todas as condições para o reconhecimento pela Unesco como patrimônios do terror. O tema foi e continua sendo censurado, a ditadura e seus cúmplices conseguiram esconder seus crimes, a sociedade não tomou conhecimento do que se passou nos porões.
Nenhum governo após a ditadura teve a coragem política de abrir os arquivos secretos em poder dos comandos militares, e cumprir a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Lula, Fernando Henrique, Sarney, Itamar, Dilma e novamente Lula abdicaram de sua responsabilidade perante a História de esclarecer o paradeiro dos brasileiros e brasileiras desaparecidos.
Entidades de Direitos Humanos, familiares e vítimas da violência de Estado pressionam o presidente Lula para a reinstalação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, desmontada pelo governo anterior. Lula prometeu, mas continua adiando, por temor à reação dos militares, que agem à margem da democracia, acabam de tentar um novo golpe e querem manter a impunidade de seus crimes.
Das 30 mil vítimas do regime ditatorial dos generais e almirantes argentinos, pelo menos cinco mil passaram pelo Cassino de Oficiais da Escola de Mecânica, onde eram feitos os interrogatórios. Com a volta à democracia, em 1983, os repressores foram julgados, condenados e presos.
O Museu Memorial da Esma foi inaugurado em 2019, Como o prédio é considerado prova judicial nos processos contra os repressores e as investigações permanecem abertas, sua estrutura não foi alterada. O imóvel é administrado pelo Estado ao lado de organizações de direitos humanos, como as Avós e Mães da Praça de Maio
Cerca de 45 mil pessoas visitaram o Museu em 2022. Estive lá em 2010, quando suas estruturas estacam sendo montadas. Fiz com Alice uma visita guiada por uma jovem cujos avós, haviam desaparecido em suas engrenagens. É difícil comparar o que vi com o que passei numa casa similar no Rio, o quartel do Exército, sede do Doi Codi, na rua Barâo de Mesquita, na Tijuca.
O espaço é mais amplo, estava vazio, limpo, silencioso. Senti o peso e os ruídos dos fantasmas. Na Tijuca a operação estava em andamento. O tempo era crucial. Suor e sangue pelos corredores e salas.
*Jornalista e escritor