Ética, mentiras e jornalismo na cobertura de guerras
A propósito do dia do professor, me lembrei de que depois de décadas, ao cabo de uma longa jornada entrando e saindo de uma redação de jornal, eu fui parar numa sala de aula e me tornei professor. Pior que gostei. Virou minha segunda profissão. Passei 15 anos nas faculdades da Cidade e PUC Rio, trocando idéias, estimulando e mostrando a meus alunos a responsabilidade que significa ser um jornalista.
Nesta época, inicio do século, eu já havia me desencantado com a profissão e caído fora de uma redação. Mas alguns jovens ainda se sentiam atraídos pela paixão de vestir a capa de repórter e gastar a sola dos sapatos nas ruas, em busca de uma boa reportagem para contar a seus leitores. Ou pela aventura de viajar para cobrir um grande acontecimento, que pode ser uma guerra, como esta no Oriente Médio, que acompanhamos com verdadeiro horror e desolação.
Cobrir uma guerra é um dos maiores desafios da profissão, sob vários ângulos: o da segurança, logístico, financeiro, e, principalmente, o ético. Expõe destruição e cadáveres, mas também feridas ideológicas e políticas. Os principais veículos de comunicação do chamado mundo ocidental e cristão cobrem o confronto Israel-Palestina com uma ótica parcial, ou disfarçadamente parcial, pró Israel.
As imagens e a maioria de seus comentaristas deixam claro para leitores e espectadores que o povo palestino é inferior, não tem o direito básico a um território próprio para sua sobrevivência. A política dos dois Estados virou retórica para discursos na ONU. Atos de terror praticados pelo Hamas, capturando e matando inocentes, merecem destaque e classificação de terroristas, mas o terror de Israel, praticado silenciosamente há décadas, não é notado.
Milhares de palestinos sobrevivem confinados e amontoados em verdadeiros campos de concentração a céu aberto, em Gaza e na Cisjordânia. Um tratamento que viola todas as normas do direito humanitário internacional.
Entre nós, a guerra é coberta à distância. Não tenho notícias de um repórter ou fotógrafo brasileiro na Faixa de Gaza. Seria um condenado à morte, tal a devastação e o morticínio causados pelos bombardeios de mísseis e aviões israelenses que atingem a população civil palestina, hospitais, escolas e tudo que estiver embaixo.
Manter um enviado especial no palco de uma guerra custa caro e é arriscado. Muitos jornalistas são feridos ou morrem em coberturas de atentados, conflitos, guerras, revoluções. Já tivemos um. O repórter José Hamilton Ribeiro, que cobriu a guerra do Vietnã para a revista Realidade, perdeu parte da perna esquerda ao pisar numa mina terrestre.
Formar um bom profissional de jornalismo implica em lhe dar o máximo de informações sobre o desempenho de sua atividade, sobre o seu país, sobre o mundo que habitamos. Entendo que este conhecimento, esta massa crítica, constitui o item mais valioso de sua formação. Não basta aprender numa faculdade as habilidades técnicas para apurar e escrever.
No meu caso, numa primeira aula de apresentação, eu lhes dava um panorama das redações e dos jornais pelos quais passei para lhes transmitir um pouco da experiência acumulada. Na verdade, passei boa parte de minha vida adulta numa redação de jornal ou em atividades paralelas. Com a interrupção de dois anos e meio nos cárceres da ditadura, mas lá também editei um jornalzinho. Fazíamos reunião de pauta durante as visitas com os familiares, sob olhares atentos dos censores fardados e armados.
Um aspecto significativo de nossa atividade jornalística é este, o de fazer história, de ser um testemunho da história. Desde que se inventou a imprensa que o repórter passou a ser um figurante da história. Em alguns casos ele até entra para a história. Vira parte dela. Pode morrer nela. Há fatos que ficam, outros se perdem, são registros do cotidiano.
Matéria prima para historiadores e pesquisadores está nos jornais e revistas. De lá saíram e vão continuar saindo livros, teses acadêmicas. Da pesquisa do historiador e do trabalho suado e honesto do repórter. A tragédia de Canudos foi vista e relatada por um repórter, Euclides da Cunha. Seu relato foi transformado num livro, que se tornou clássico, Os Sertões.
Repeti e enfatizei durante anos para meus alunos que jornalismo se caracteriza e se distingue por ter uma relação direta com a história do país, por fazer um registro do acontecimento ainda quente e palpitante. Com emoção, mas com a isenção possível. O veículo impresso é um documento, fonte de consulta, que se espera séria e confiável. Nem sempre é.
Repórter faz história. E vem de muito longe essa relação. O historiador Heródoto, século V, foi o primeiro repórter que se tem notícia. Há uma tese acadêmica sobre. Onde chegava, queria saber como viviam as famílias, o que comiam, plantavam. Observava, conversava, anotava. Exatamente como faz ou deve fazer um repórter.
Chamei a atenção dos futuros profissionais para o fato de que o maior inimigo do jornalista é a censura. Do Estado ou da empresa. Durante a ditadura militar muita coisa deixou de ser registrada e noticiada por causa da censura. Ou da parcialidade das empresas. Leitores esperam independência, isenção e pluralismo. Pagam para isto. Há um grande branco na imprensa naquele período. Quase nada das violações e dos crimes da ditadura foi publicado.
Falei de Mário de Moraes, um velho repórter das melhores tradições do jornalismo investigativo. Em suas memórias, ele disse que há três tipos de repórteres. O anotador, que apenas ouve e transcreve declarações sem nenhuma reflexão; o que tem suas próprias certezas e convicções e escreve suas reportagens de acordo com elas; e o que tem dúvidas e vai a luta com os sentidos abertos. Estes são os verdadeiros jornalistas.
Uma aluna de olhinhos curiosos quis saber se Mário de Moraes existia mesmo e se existe liberdade dentro de uma Redação. Sim e não. Mário trabalhou na revista O Cruzeiro. Liberdade em Redação nunca é plena, precisa lutar por ela. No dias de hoje, dizer que Biden deu carta branca para o extremista Netanyahu eliminar do mapa o povo palestino, poderia ser publicado num artigo assinado ou no texto de um colunista. No noticiário, Biden e Netanyahu são amigos, defensores da democracia e se apertam as mãos nas fotos.
Álvaro Caldas. Jornalista, escritor e professor