Alguma coisa urgente está para acontecer antes que o mundo acabe
Estava começando a escrever esta última crônica de dezembro, com o pensamento de que nada há para comemorar neste final do ano de 2023, quando vi passar pela janela um homem solto no espaço, dependurado por correntes e fios de aço, sentado numa cadeirinha. Carrega uma lata de tinta presa à cintura e um pincel na mão direita, com o qual vai cobrindo de branco a parede lateral do prédio. Estamos no oitavo andar e o sol abrasador torna a sua árdua forma de ganhar a vida ainda mais difícil.
Comovido com a cena, aceno para ele. Mentalmente, faço deste estoico operário negro uma espécie de herói, cuja movimentação pelo espaço acompanho com indizível temor. Um ser livre, num solitário contraponto aos perigos que nos cercam no solo. Ato contínuo confiro-lhe o titulo de Homem do ano.
Sua repentina visão provoca uma brusca reviravolta em minhas percepções sobre a realidade, inclusive nos rumos desta crônica. Alguma coisa urgente está para acontecer, eu vinha pensando antes, sem saber o quê exatamente. Ninguém sabe de onde virá o estalo que irá enfim nos despertar.
Há os que dizem que pouco ou nada temos a comemorar ao fim deste ano desagradável e hostil, numa época de intolerância e de extrema polarização política. Ano, vamos recordar, que começou com a tentativa de um golpe de Estado, com a invasão das sedes dos três poderes em Brasília por uma horda de extremistas de direita incentivada por militares bolsonaristas.
Dias antes, Lula subira a rampa do Palácio do Planalto numa cerimônia de posse apoteótica e memorável, acompanhado de sua mulher Janja, uma catadora de lixo, um cacique indígena, uma pessoa com deficiência e um cachorro. A multidão deu glórias e vivas à democracia. Sem dúvida, uma excelente alvorada.
De outro lado, uma parte dos brasileiros vê motivos para um réveillon festivo, com explosão de fogos para saudar o fim de um ano que começou com a imposição de uma derrota aos vândalos golpistas, e termina com a aprovação de uma reforma Tributária histórica na República, iniciativa de um governo petista, Lula e Haddad no comando da operação. Não é pouco. Os inimigos dentro e fora do Congresso são ferozes.
Deu para respirar e manter um fio de esperança para o que der e vier em 2024. Seria o caso de brindar, dizer feliz ano novo e sair para o abraço? Nada a ver com trágico desfecho do conto de Rubem Fonseca em seu livro “Feliz ano Novo”, de 1975, lançado e proibido em plena ditadura. O clima de confrontos, desigualdades e violência urbana permanece o mesmo. Só que Rubem é um artista, que toma e ficcionaliza a banalidade da violência como modelo de comportamento dominante na sociedade.
Mais de dois mil dos manifestantes que destruíram as instituições do Estado no 8/1 foram presos. 230 deles denunciados como executores de atos golpistas. Até agora o STF condenou 30 acusados, com penas de 3 a 17 anos. Declarado inelegível por oito anos pelo TSE, o chefe da gang continua solto.
Salvou-se a democracia, mas a impressão deixada por 2023 é desagradável e decepcionante. O ano não tem um cheiro bom. Não dá para se resignar num país cada vez mais castigado pela arrogância das elites, o desemprego e a fome, a estupidez de uma classe média conservadora e falsamente religiosa que se afunda em preconceitos. Depois de Bolsonaro, nos tornamos um país com feiúra exposta, racista e carregado de ódio. Explodiram preconceitos contra pobres, negros e homossexuais, com um perturbador enfraquecimento da democracia.
Por aí afora o mundo está se tornado um lugar inabitável, espalhando manchas de horror, guerras e agressões por todos os continentes. Como se estivesse às vésperas do apocalipse. Olho para a janela e vejo que o homem dependurado no espaço avançou em seu trabalho, encontra-se agora dois andares abaixo. Usa um largo chapéu mexicano, ajeita o corpo com cuidado na cadeirinha.
Pressinto que alguma coisa urgente está para acontecer. Não se sabe de onde virá o estalo. De qualquer forma, penso que devemos nos preparar para uma nova realidade, como a que vi no filme “O mundo depois de nós”, em exibição na Netflix. Um filme assustador, onde a realidade é confusa e inexplicável. Soam ruídos estridentes no céu, filas de automóveis abandonados se formam nas estradas, telefones e internet param de funcionar.
Desconfia-se de ataque cibernético ou talvez um ato de terrorismo, um golpe de estado em andamento. No centro da trama, duas famílias que se encontram por acaso numa casa luxuosa vivem momentos angustiantes. No casal de brancos, (o outro é de pretos), Julia Roberts faz o papel de uma mulher envelhecida, apavorada e arrogante. “O mundo depois de nós” é um filme tão desagradável quanto nossa época de polarização religiosa e política, de aguda intolerância.
O filme não especula sobre a emergência climática, sobre o fim da era dos combustíveis fósseis. O planeta está perto de ultrapassar todos os limites naturais para o equilíbrio de condições adequadas para a vida humana. Este foi o ano mais quente registrado pela Humanidade. Em palavras ditas nas ruas: tocou o foda-se.
Ao apagar suas luzes, 2023 ainda levou Carlos Lyra, 90 anos, lendário compositor da bossa nova, que produziu maravilhas como “Primavera” e “Minha namorada”. E não se ouviu durante o ano uma palavra sobre o cumprimento da promessa do governo Lula de recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Trata-se de memórias malditas e perigosas dos vencidos, que o Estado intimidado tenta fazer desaparecer. “São histórias dolorosas, que fazem parte de nossas vidas e que continuam em nós, marcadas a ferro e fogo”, nas palavras de Cecília Coimbra, uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais. Falar delas é absolutamente necessário.
*Jornalista e escritor