A Frente, ou o mínimo de decência que exigimos
Rajadas de ventos alísios comuns em regiões tropicais agitaram os céus do território nacional no último fim de semana, provocando um deslocamento dos blocos dominantes no cenário político-institucional. A estação ainda não mudou, mas o fenômeno desanuviou o clima e ao mesmo tempo e paradoxalmente elevou a tensão e aumentou os riscos de novos temporais. Pela primeira vez desde o inicio deste governo inominável, que se autodeclara fascista, o país foi despertado no domingo por ondas de revolta, descontentamento e insubordinação.
Caiu uma repentina chuva de manifestos de tons e autores variados, muitos deles adversários uns de outros, combinada com o imprevisto surgimento de grupos de manifestantes nas ruas, puxados pelas torcidas antifascistas de clubes de futebol. Na linha de frente na Avenida Paulista uma faixa estendida pela Gaviões da Fiel bradava em letras grandes: Somos pela Democracia. Uma novidade no cenário esportivo brasileiro, onde futebol não combina com política.
Com a iluminação do palco, os atores tornaram-se claramente visíveis, seus rostos mais nítidos. De um lado pode se ver que Bolsonaro mussolinizou-se sem pudores. Uma verdadeira metamorfose que nem Kafka ousaria. Para imitar seu ídolo, posou para foto montado num cavalo, faz os mesmos gestos, usa os símbolos e bordões do ditador fas-cista. Falta ostentar seu título de marechal.
Aliou-se a um grupo de generais golpistas e distribui armas para suas milícias, os camisas pretas. Faz sobrevoos de helicóptero e usa o palanque na praça dos Três Poderes para anunciar ao que veio e o que quer. Nada menos que uma ditadura de caráter fascista, por mais absurdo que isso possa parecer em pleno século 21.
Talvez não saiba que Benito Mussolini terminou sua infame trajetória dependurado em uma viga de metal de cabeça para baixo, na praça Piazelle Loreto, em Milão, em abril de 1945, no final da Segunda Guerra. Antes de ser fuzilado por membros de um grupo de resistência que efetuou sua prisão, pediu aos guerrilheiros que atirassem em seu peito, para não desfigurar o seu perfil.
No lado oposto deste palco decorado com as cores da bandeira do país, uma imensa maioria de brasileiros, soterrados pela indiferença, o medo e a pandemia de covid 19, irrompe em cena para declarar que não abre mão de viver na democracia. É o mínimo de decência que exigimos, parecem dizer. O resto, a gente vê depois. Os valores morais, intelectuais e políticos estão em primeiro plano. Democracia versus fascismo é um confronto extemporâneo, uma regressão no tempo civilizatório.
Não há registro de fenômeno temporal semelhante na História nem na literatura de ficção. Marx, quando formulou que na primeira vez a história se repete como tragédia e na segunda como farsa, não pensou nesta aberração. Mas este é o jogo político que se trava no Brasil de hoje, devastado por uma epidemia que se alastra no rastro dos equívocos e da omissão criminosa do governo. Projeta-se que nos próximos quinze dias, 50 mil brasileiros vão morrer nesta guerra silenciosa, que terá um milhão de contaminados.
As nuvens e os ventos alísios do final de maio empurram os personagens para uma outra frente de batalha, os confrontos de rua, camisas pretas versus democratas, torcedores ou não. Para levar adiante seus planos, Bolsonaro precisa de cadáveres. Suas bases radicais falam abertamente em guerra civil. Seu objetivo é promover o caos para instaurar medidas de exceção.
Não é este o caminho da oposição que se uniu em manifestos e frentes imponderáveis, só possíveis porque o capitão queimou todas as etapas. Sua presença tornou-se nefasta e inaceitável em todos os segmentos sociais, exceção de suas falanges. Contra ele, a união se faz em defesa de um valor supremo, o direito à vida. O mais amplo destes manifestos, o “Estamos Juntos”, aproximou burgueses, pequenos burgueses, banqueiros, gente dos mercados, economistas, sindicalistas, artistas, religiosos, jornalistas, intelectuais, profissionais de diversas áreas e políticos de matizes ideológicos antagônicos
Pessoas que um dia divergiram, se xingaram, traíram ou foram traídas, rivais ou inimigos, toparam assinar.
É uma frente sem princípios. Uma frente para salvar vidas e garantir a sobrevivência de um país contaminado pelo vírus e pelo ódio internamente, e desacreditado no exterior. Dos lideres mais relevantes, ficou de fora o metalúrgico nordestino Lula, duas vezes presidente, condenado pela Lava Jato e preso, líder de uma ampla faixa de trabalhadores e com grande prestígio internacional. O que virá a seguir dirá o seu lugar na História. No momento, 70% dos brasileiros querem a democracia e se livrar das pestes que o assolam.
*Jornalista e escritor