Inventário da resistência e atrocidades na casa de Petrópolis
Tendo como fiador o Estado brasileiro representado pelo ministro do Exército, Orlando Geisel, o Centro de Informação do Exército (CIE) alugou - ou fez contrato amigável de cessão com o proprietário - uma confortável casa de veraneio de estilo alpi-no na serra de Petrópolis, Rio de Janeiro, no início da década de 70. Lá pôs em funcionamento uma experiência avançada em sua guerra interna contra a subversão. Montou um laboratório de torturas para aniquilar e converter em infiltrados determinados prisioneiros políticos, selecionados por seus algozes. Na Casa da Morte, o preço da preservação da vida, ainda que mutilada, era a rendição para desempenhar o infame papel de informante. O resultado mostra que a experiência fracassou.
O sistema de repressão ditatorial tinha como base os Doicodis, centros de tortura, assassinato e desaparecimento, instalados nos quarteis. O chalé alemão com trepadeira enrodilhada nos portões de ferro foi montado pela Inteligência do Exército para ser uma etapa superior e definitiva. Homens e mulheres liberados ao final do cativeiro deveriam recontactar sua organização, ou outra a que estivessem ligados, para atuar como um infiltrado. Um prisioneiro controlado pelo radar do dr. Nagib, ou outro doutor do CIE. Lá, ninguém tinha nome próprio, todos os oficiais eram tratados de doutores.
Os escolhidos para essa experiência já chegavam calejados, pois haviam sobrevivi-do ao pau de arara e aos choques elétricos da primeira fase pós-prisão, em um Doicodi da vida, onde o que importa é suportar a dor e controlar a relação tempo/informação. Na casa de recreação dos doutores a questão é diferente. Não há mais informações importantes e urgentes que se possam arrancar do preso e conduzir a outra prisão ou a um no-vo aparelho. Eles não têm pressa. O que a repressão quer agora é acabar com a subversão e matar os subversivos.
A assombrosa história da casa acaba de ser reaberta com a denúncia do Ministério Público Federal, por sequestro e cárcere privado, contra três militares acusados de sequestrar e torturar o advogado Paulo de Tarso Celestino. Onde? Num imóvel situado em Petrópolis, de onde ele desapareceu. O goiano Paulo de Tarso, ex-presidente da Federação dos Estudantes de Brasília, foi preso em julho de 1971, tinha 27 anos, em companhia da atriz e teatróloga Heleny Telles Guariba, então com 29. Ela teve formação na França e trabalhou com Augusto Boal. Estava com viagem marcada para sair do país.
Clandestinos, encontravam-se encurralados, caçados pelos órgãos de repressão. Ambos passaram primeiro pelo Doicodi do Rio. Talvez tenham se encontrado num ponto de namorados, ele da ALN, ela da VPR. Inês Etienne Romeu, única sobrevivente, testemunhou sobre a presença de ambos na casa de terrores. Relatou que no processo de tortura de Paulo de Tarso enfiaram porções de sal em sua boca e depois negaram água. Durante horas, ela ouviu suas súplicas por um copo d´água. Segundo a denúncia do MPF, a ação de sequestro dos agentes configura crime contra a humanidade e não se submete à Lei de Anistia nem a regras de prescrição.
Os cativos da casa não tinham mais nenhum contato com o exterior, seja familiares ou advogado. Na verdade, não mais existiam. Isolado, o guerrilheiro chegava de olhos vendados ou capuz, não sabia onde estava. Colocado num ambiente claustrofóbico e opressivo era submetido a uma violência diária, banal, praticada com requintes de doen-tio prazer com o objetivo de lhe tirar os últimos resquícios de humanidade.
Sabiam que ao final daquele ritual de horrores ele seria eliminado. Ou não. O buro-crata concentracionário dono de sua vida tinha o poder de devolvê-la, desde que aceitasse colaborar. Para se livrar da dor, da nudez humilhante, do desespero, de sua raiva impotente, daquela ruína em que se transformara e até da tentação do suicídio, teria que ceder ao terror da violência e ir contra sua própria natureza.
A experiência fracassou. Nenhum prisioneiro virou delator. Todos os casos tra-balhados (calcula-se entre 18 e 40, só o CIE sabe), tiveram sentença de morte. Houve uma resistência surda, calada, de corpos feridos e ensanguentados. Menos um. A exce-ção conhecida é a mineira Inês Etienne Romeu, da VAR Palmares, única testemunha dos atos de infame selvageria. Pelas regras da Casa, cada preso tinha uma espécie de tutor responsável por seu destino. Este homem, um oficial do Exército, era dotado de poder absoluto e inapelável sobre a vida do prisioneiro. Na realidade, um matador, mas concebia-se a si mesmo como dotado de uma onipotência divina.
Inês estava nas mãos do dr. Bruno, o coronel Cyro Etchegoyen, do CIE, que acre-ditou tê-la transformado numa agente dupla depois de três meses de cativeiro em que foi estuprada, seviciada e torturada. Fizeram um vídeo com ela assinando um contrato e recebendo dinheiro. Com o instinto e a coragem que lhe restaram, Inês negociou, foi solta, contou a história e está viva na memória. O logro custou a Etchegoyen sua promoção a general.
Esta é uma história típica de uma ditadura. Que para o general Pazuello, que desconhece o AI 5, não houve. Que ganharia uma dimensão trágica se contada por um ficcionista. Com o seu poder de nos revelar o indizível, ele poderia situar o drama num país fictício da América do Sul, como fez o húngaro Imre Kertész, prêmio Nobel, em seu livro “História Policial”, Editora Tordesilhas. Prisioneiro nos campos de Auschwitz e Buchenwald, ele conhece o clima de terror vivido no chalé de Petrópolis, propriedade do empresário alemão Mário Lodders, simpatizante da ditadura militar, que o cedeu ao Exército.
Numa passagem, um dos personagens de Kertész pergunta ao interrogador: “O que você quer?” “Quero que você passe a colaborar. Nós estamos aqui a serviço da Lei.”. “Você é um porco!” Fez se silêncio, ambos ficam calados por um instante. A Casa da morte de Petrópolis é propriedade privada. Uma ONG, o Grupo Inês Etienne Romeu, liderada pela jornalista Márcia de Almeida, coordena uma campanha nacional e internacional por sua desapropriação e transformação em um Memorial que preserve sua história.
*Jornalista e escritor