'Vivemos numa sociedade hipócrita'

Por Hildegard Angel

Livro de Luiz Carlos Prestes

O Carnaval se despediu da cidade e chegou ao fim no último domingo. Para fecharmos a folia com chave de ouro, entrevistamos Luiz Carlos Prestes Filho, especialista em economia da cultura, Diretor da Federação Nacional das Escolas de Samba, e autor do livro: "O Maior Espetáculo da Terra - 30 anos de Sambódromo". Neste bate-papo intrigante com um dos maiores especialistas em Carnaval no Brasil, abordamos a polêmica relação entre as Escolas de Samba e o Jogo do Bicho.

Aliás, se há uma palavra que define este "casamento", segundo Prestes Filho, é a hipocrisia. Nosso entrevistado avalia que o Brasil está sendo hipócrita consigo mesmo, e, por este motivo, vendou seus próprios olhos, negando a si a sua "galinha dos ovos de ouro". Entre o que poderíamos colher a partir da nossa maior festa popular, e o que realmente está sendo colhido nas últimas décadas, o resultado é muito baixo. Para Prestes, enquanto o Bicho seguir no anonimato, o Carnaval jamais atingirá o seu ápice econômico, e quem sofre com isso é o país.

JB - O Sr. se diz um defensor do reconhecimento da participação positiva dos bicheiros no Carnaval. Por quê?

Luís Carlos Prestes- Penso que quem conhece e estuda o Carnaval, não consegue deixar de reconhecer o papel de personagens como o Natal da Portela, um dos baluartes de uma das maiores escolas do Brasil. O Natal da Portela foi bicheiro, e a vida inteira investiu no Carnaval. Foi através de nomes como ele, assim como Anísio Abraão, Capitão Guimarães, Luizinho Drummond e Carlinhos Maracanã, que o Carnaval se transformou e cresceu.Naquele tempo (década de 30), as agremiações não tinham espaço na mídia, e tampouco aportes do governo. O Jogo, que é proibido há de mais de 130 anos, atravessou duas ditaduras, a crise de Getúlio Vargas, o Golpe Militar de 1964... Apesar de qualquer força política, o Jogo prevaleceu. E como diria o economista Carlos Lessa, não se pode negar a engenharia social do carnaval, a partir da liderança dos bicheiros. A escola de samba é antes de mais nada uma plataforma de atendimento. Nas Escolas é onde se faz campanha de saúde, cursos profissionalizantes, atividades esportivas e culturais, festas de 15 anos, velórios, enfim. O presidente de uma escolas é um gestor dos anseios daquela comunidade. Apenas no RIo de Janeiro, são 94 agremiações com este perfil. Isso me permite defender a presença dos bicheiros no carnaval.

Você não tem receio em defender uma prática de contravenção?

Não tenho. Nos últimos anos, eu fiz algumas publicações e discursos em defesa da legalização dos Jogos de Apostas com dinheiro administrado pela iniciativa privada. Defendi a regulamentação do jogo do Bicho. Eu apoio o Zeca pagodinho, que diz o Bicho devia ser Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil. A lei do contraventor é de 1941, faz parte um estado autoritário. Castelo Branco, na ditadura, criou uma lei que diz que "jogos de dinheiro ameaçam a soberania nacional". Isso porque o Paulo da Portela fez uma homenagem ao meu pai em 1946. Só que o Bicho é uma realidade: emprega um milhão de pessoas. Em Brasília, existe banca do Bicho até em frente ao legislativo. São 20 milhões de apostas diárias. É muito melhor regulamentar, tirar da sombra, e permitir com que os impostos gerados sejam revertidos em políticas públicas. Mas, infelizmente, vivemos com a paranoia de que o jogo "ameaça a Ordem, a soberania nacional".

Qual a maior dificuldade para legalizar o jogo no Brasil?

Hipocrisia. Essa é a maior dificuldade. Vivemos uma sociedade hipócrita. Isso, só não vê quem não quer. Sobre o Jogo, só não enxerga a sua importância quem fecha os olhos para ele. É uma grande hipocrisia. É um elemento agregador e positivo para o Carnaval. O problema é que nos apegamos aos dogmas do passado. O único país ocidental que não tem jogo regulamentado é o Brasil. Até a China começa a despontar no mercado internacional de Jogos. O Vietnã tem uma estrutura de cassinos e bingos que está roubando apostadores de Las Vegas e Macau. Nós não queremos olhar para nossa sociedade como ela é. Pessoas próximas de nós jogam no Bicho. A hipocrisia realmente me choca.

É possível fazer um Carnaval sem a participação dos bicheiros?

Eu penso que os os próprios bicheiros, ao buscar a regulamentação, querem que o Carnaval tenha a sua sustentabilidade. Eu defendo que, se for regulamentado, o dinheiro pode, e deve, ser investido nas Escolas de Samba. O Bicho foi fundamental para construção do conceito de "Maior Espetáculo da Terra". Os bicheiros querem continuar protagonistas no Carnaval. Hoje, seria impossível realizar o Carnaval sem o Bicho. O Crivella pensa que o dinheiro das escolas é empregado integralmente no desfile. Não é verdade. Esse dinheiro faz parte de ações sociais, de cidadania e educação nas quadras, que duram o ano inteiro. Ele pensa que as quadras ficam fechadas fora do Carnaval.

O Carnaval precisa de mais investimentos públicos?

O Crivella, Pezão, Sérgio Cabral, esses são homens do passado. Eles imaginam o Brasil industrial. Nessa visão, inclusive, está baseada nossa legislação tributária, que previa o desenvolvimento industrial brasileiro. É uma visão do passado. Precisamos prestar serviços. Nossa economia deve ser baseada em serviços, e Reforma Tributária passa por entender isso. O Witzel tem a intuição de que o Carnaval é importante. Os outros não conseguiam ver isso. Grande parte da arrecadação vem da área de serviços. E as escolas promovem prestação de serviço de utilidade pública. Por isso que a prefeitura tem que investir na festa. Se você insere 80 milhões de reais, o Carnaval faz render três bilhões. Qualquer pessoa lúcida vai ver isso. Se o sambódromo foi abandonado, é preciso entender que ele é a única plataforma que pode se equiparar a uma Hollywood, Disney, Las Vegas... Enfim, poucos países no mundo tem essa possibilidade. A nossa saída não é uma indústria bélica, ou de equipamentos eletrônicos. Quem sabe se a saída econômica para o Brasil não é a festa? Agora, outros países estão estudando a nossa festa. Precisamos entender que o que está sendo apresentado é o potencial da cultura, da poesia, dança, literatura. É uma plataforma que permite que o Brasil seja visualizado pelo mundo.

Na sua opinião, qual o grande problema da indústria do Carnaval atualmente?

São os mesmos problemas que enfrenta a indústria gráfica, automotiva e etc. Ele sofre com o desgaste da ausência de educação no país. Precisamos mudar o quadro de educação. Outra área que precisa ser assistida é de ciência e tecnologia. A população está ao léu. Há uma decadência do atendimento da população, e o Carnaval está inserido neste contexto. A Camila Soares, do Pimpolhos da Grande Rio, defende com afinco a criação de uma universidade do Carnaval. Eu concordo com isso. O que é a profissão de Diretor de Quadra? Um Diretor de Barracão? Um Carnavalesco? Qual escola de música no Brasil que se ensina cuíca? Onde que se aprende a ser aramista? O investimento na formação de profissionais precisa ser feito.

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