Como fazer o Orçamento cair na real
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Fazer orçamentos públicos no Brasil sempre foi complicado. A falta de disciplina fiscal briga com a inflação como a história do “ovo e a galinha”: quem veio antes e quem era causa ou efeito? Ajustar as projeções de gastos e receitas dos três Poderes, incluindo as emendas parlamentares, a projetos orçamentários como o Projeto Purianual (PPA), uma estimativa de receitas e despesas para os próximos 4 anos, sempre foi motivo de atritos entre o Executivo e o Congresso. A lei diz que o Executivo deve submeter ao Congresso, até 15 de abril de cada ano, a Proposta de Diretrizes Orçamentárias que vai balizar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o ano fiscal seguinte (no Brasil ele vai de 1º de janeiro a 31 de dezembro) e a LDO deve ser submetida à Câmara dos Deputados até 31 de agosto.
Quando o Congresso aprova tudo, incluindo emendas dos Parlamentares, tem-se o Orçamento Geral da União (OGU), cujo cumprimento é fiscalizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), órgão de assessoramento da Câmara dos Deputados em sua função de vigiar o Executivo em nome do cidadão-contribuinte-eleitor. Não poucas vezes na história em que o ano começa, como em 2021, sem que o Congresso tenha feito emendas na PLO e aprovado o Orçamento Geral da União. Hoje, 16 de abril, a PDO do OGU de 2022 já deveria ter sido chegado à Câmara, mas ainda se discute a Lei de Diretrizes Orçamentárias do OGU de 2021. Antes do feriado de Tiradentes ou da “descoberta” do Brasil, dia seguinte, há 521 anos, não haverá OGU aprovado.
O exemplo de JK
Um exemplo típico de como a inflação, a queda brusca de receitas ou a voracidade de gastos (muitas vezes é a soma de um pouco dos três juntos) tornam a proposta de Orçamento mera ficção ocorreu no governo JK. O economista responsável pela elaboração das contas do Orçamento (Herculano Borges da Fonseca) tirou férias e o seu substituto na Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito – um híbrido de Ministério da Fazenda e de Banco Central, que só foi criado no fim de 1964, absorvendo muitos quadros da Sumoc e a Conta Movimento do Tesouro Nacional) resolveu fazer uma proposta irrealista de déficit público para 1958. Isso era no 1º trimestre do ano, mas os números propostos já tinham estourado em 1957.
Se fosse para valer no Congresso, vá lá. A inflação inchava as receitas e as metas de gastos podiam ser ajustadas com novas metas (por isso os Orçamentos têm a previsão de crescimento do PIB e da inflação, além, do salário mínimo, que exerce forte impacto nas finanças públicas). Acontece que as metas propostas foram enviadas no começo de 1958 ao Fundo Monetário Internacional, para a obtenção de empréstimo de US$ 200 milhões (muito dinheiro na época). O FMI exigia um pacote de medidas anti-inflacionárias: a inflação deveria ficar em 6% ao ano, no máximo, taxa única de câmbio, fim dos incentivos aos agricultores e arrocho salarial. Metas impossíveis de serem cumpridas diante das fortes obras de infraestrutura (estradas, portos, hidrelétricas) e, sobretudo, com a construção da nova capital em Brasília.
Herculano me contou, quando dirigiu a CVM, no governo Figueiredo, que ao retornar das férias viu a impossibilidade de cumprir os acordos e alertou o então ministro da Fazenda, José Maria Alkmin, do problema. Esperto, JK, cozinhou o FMI enquanto pode. Trocou Alkmin por Lucas Lopes em outubro de 1958 e continuou gastando. Para que os gastos com Brasília não fossem contabilizados no Orçamento Geral da União, usou dinheiro da poupança forçada dos Institutos de Previdência (Iapi, Iaptec, Iapb, etc), a exemplo do que fizera o austero Getulio Vargas para construir a CSN, em Volta Redonda –RJ). A grande diferença é que a CSN produziria aço e teria retorno econômico. Brasília, não. E se revelou ao longo do tempo um sorvedouro de dinheiro público, quando atraiu para o Planalto Central funcionários públicos federais nem tão brilhantes assim (os mais competentes não queriam trocar o Rio pela solidão do cerrado no começo dos anos 60). Os “barnabés” foram cooptados com reajustes de salários e mordomias como apartamentos funcionais. Depois de aberta a “caixa de pandora”, a nova capital virou um sorvedouro sem fim.
A ida de um economista mais preparado como Lucas Lopes para o ministério não resolveu o problema. O figurino desenhado para o FMI era dois números inferior à realidade dos gastos inflados. Sem alternativa, JK se valeu do impasse para se capitalizar politicamente. Conseguiu apoio dos sindicatos (todos contra o arrocho salarial), estudantes e donos de jornais – um dos segmentos que seriam afetados com o câmbio único. Por sinal, quando Jânio Quadros fez isso – com a Instrução 204 da Sumoc – foi um “Deus nos acuda” e recebeu uma saraivada de críticas pesadas da imprensa, à frente Carlos Lacerda, cujo jornal “Tribuna da Imprensa”, não contemplado por empréstimos dos bancos oficiais nos governos Vargas e JK, foi dos mais afetados.
Depois de empurrar a crise por quase um ano e meio, JK rompeu ruidosamente com o FMI em junho de 1959. A jogada deu dividendos políticos, mas em fevereiro de 1960, durante a visita do presidente Eisenhower ao Brasil, o mandatário dos Estados Unidos (que sempre teve poder de voto e veto no Fundo) perguntou se não era possível negociar o acordo em novas bases. JK não perdeu tempo e voltou a negociar com o fundo em bases realistas.
Quando o Orçamento era mera ficção
No governo Geisel a União chegou a ter três orçamentos. O OGU propriamente dito estava sempre equilibrado e levemente superavitário. Mas existia o Orçamento Monetário (um monte de contas parafiscais mal geridas pelo Banco Central e pelo Tesouro) e ainda o Orçamento das Estatais (algumas davam lucro, mas a maioria tinha as contas cobertas ao longo do ano pela União - o que continua até hoje, mesmo com o forte encolhimento das estatais federais). No final dos anos 70, num Congresso de Economistas em Gramado (RS), o economista do Ipea, Cláudio Roberto Contador, apresentou um exercício fundindo as contas dos três orçamentos e surgiu um rombo enorme. Paulo Henrique Amorim, editor de Economia do JB, foi ao Congresso, me passou a matéria com o furo e pediu destaque (era subeditor). Deu 1ª página e o general Geisel, furioso, chamou Reis Veloso, ministro do Planejamento. “Como pode ser isso, se há poucos meses falei do superávit das contas públicas”.
O saudoso PHA me liga no dia seguinte contando a pressão sofrida pelo Veloso após a chamada da 1ª página. Sobrou para o Contador, a quem tive de procurar ao telefone para se “desdizer” em outra matéria, na qual ele teve de dizer que “era um mero exercício contábil”. Muitos anos depois encontramo-nos, justo em Gramado, e ele contou da mágoa com o episódio. Esta contabilidade fictícia só foi desfeita em 1989, após a Constituição definir um orçamento único, quando equipe chefiada por Pedro Parente cortou o cordão umbilical entre o Tesouro e o BC, extinguindo quase integralmente a Conta Movimento. Sobrou a aberração da dívida pública na carteira do Banco Central.
O impasse atual do OGU
O impasse atual para se concluir o OGU de 2021 é complexo e simples, ao mesmo tempo. Só a visão de contabilista enquadra projetos de grande porte dos governos num orçamento rígido, circunscrito a um ano fiscal. Eles são mais corretamente lançados no PPA (para execução ao longo de 4 anos) com a cota-parte de cada ano. Isso permitiria maior flexibilidade para os investimentos públicos no Orçamento, a cada dia mais comprometido com despesas obrigatórias (discricionárias). Os deputados querem emplacar suas emendas.
E só a visão de uma equipe econômica fora da realidade, sob o comando do “Posto Ipiranga” Paulo Guedes, poderia supor que a crise da Covid-19 perderia efeito na troca do ano fiscal de 2020 para 2021. Era óbvio que receitas e despesas tão cedo não voltariam à normalidade no Brasil e no mundo - salvo em dois, três ou até quatro anos mais. As projeções do FMI para 2021 e 2022 estão aí para mostrar que nem as mais dinâmicas economias vão voltar ao patamar anterior à crise da Covid-19 em menos de dois anos. Na crise financeira mundial de 2008, desencadeada pelo estouro do mercado de subprime dos EUA foi assim. Os principais bancos centrais do mundo e as respectivas políticas fiscais mantinham o viés expansionista até a pandemia da Covid-19 abalar novamente os alicerces da economia em março de 2020.
O choque recente dos preços do petróleo e derivados e dos alimentos tornaram as metas de inflação, despesas salariais e crescimento do PIB para 2021 bastante improváveis. Seria o 2º ano seguido de um orçamento irrealista em mais de uma década de crescentes déficits nominais (os gastos menos as receitas, acrescidos das despesas de juros da dívida pública) – uma conta mais realista que os superávits primários, que passam a ser ficção quando as despesas de juros são de maior monta, levando a mais endividamento.
Solução? Ampliar horizonte do Orçamento
Na crise atual, cuja sustentabilidade da questão fiscal não pode se limitar à contabilidade anual das receitas menos despesas do Tesouro, e o respeito ao teto anual, mas incluir, em horizonte temporal maior, a própria dinâmica da dívida pública (cuja sustentabilidade, a confiança dos atuais compradores de papéis do Tesouro, depende da crença da gestão do governo sobre a dívida), o economista Manuel Jeremias Leite Caldas formula uma outra abordagem. Inspirado no otimismo empreendedor de JK, mas alicerçado na teoria do economista francês Léon Walras, que, em 1874, publica seu pioneiro, “Éléments d'économie politique pure ou Théorie de la richesse sociale”, Manuel Jeremias considera que o “O Equilíbrio Intertemporal de Longo Prazo” das contas públicas deriva-se da teoria do equilíbrio geral onde a interação entre demanda e oferta resultará no equilíbrio geral de toda a economia.
Em outras palavras, “A teoria do equilíbrio geral contrasta com a teoria do equilíbrio parcial, que analisa mercados ou períodos isolados”. Caldas considera a “teoria do equilíbrio geral um ramo da teoria microeconômica”. Ou seja, limita-se a “dar uma visão global do comportamento da produção do consumo e da formação de preços em uma economia com vários mercados e a intervenção econômica dos agentes públicos ofertando serviços públicos custeados com impostos e estoques de dívida pública”.
Mas a “variável que absorve todos os impactos é conhecida como dinâmica da dívida pública e sua evolução é a componente chave do modelo”. Esta é a preocupação de gestores, órgãos de fiscalização, legisladores e até da própria justiça, com leis, regras detalhadas que se manifestam no orçamento público.
É a peça fundamental que move as finanças públicas como o mercado privado, sendo o setor financeiro o principal avaliador do equilíbrio que as contas públicas devem ter ou se precisam de ajustes para que a trajetória deixe de convergir no longo prazo. Em um sistema de mercado, os preços e a produção de todos os bens, incluindo o preço do dinheiro e o juro, estão relacionados.
Com o advento da pandemia, diz, “a dívida pública foi deslocada para um patamar que começa a preocupar os agentes financeiros e estes têm dúvidas de que a continuidade da pandemia e os esforços do governo até hoje formulados não sejam suficientes para que ultrapassemos essa fase de risco”.
Levando em conta a teoria de equilíbrio geral intertemporal de longo prazo e esclarecido o funcionamento do teto de gastos como equilíbrio local, fica patente que este restringe fortemente a obtenção do alcance do equilíbrio de longo prazo. “Assim é necessária uma proposta de forma que o equilíbrio anual exigido no orçamento seja transmutado para um equilíbrio de médio prazo, cinco anos, por exemplo”, sugere Manuel Jeremias.
Governo já pensa na alternativa
Essa ideia, aliás, já começa a ser considerada em círculos do governo para superar o impasse. Ou, digo eu, vale a pena continuar a discussão inútil diante da peça de ficção que são os orçamentos públicos em tempos de pandemia. O passado não vale para prever o futuro. Manuel Jeremias aponta as intervenções do governo em termos de fortes investimentos na área de infraestrutura e o combate da pandemia com política sanitária pública mediante vacinação em massa, recomendação de isolamento social com manutenção de distâncias mínimas entre desconhecidos ou mesmo conhecidos, uso de máscaras e medidas de asseio das mãos e vias respiratórias.
Dessa forma, a expectativa seria de que com a massificação dessa estratégia, o país possa atingir esse novo equilíbrio e assim retornar para a estratégia de longo prazo, voltando a crescer e convergindo para o equilíbrio intertemporal de longo prazo das contas públicas que é espelhado no orçamento anual refletido nas três peças fundamentais deste equilíbrio: PPA, LDO e LOA. O PPA é o plano plurianual, a LDO é lei de diretrizes orçamentárias e a LOA é a lei orçamentária anual. São três instrumentos utilizados pelos governos para organizar e administrar o orçamento público. Pode-se dar um destaque do PPA sendo assim, a nova peça chave do orçamento público e as balizas para o setor privado retificando, portanto, o teto de gasto da teoria do equilíbrio geral.
Como realizar essa estratégia de equilíbrio de médio prazo, p. ex.de 2019 a 2023? Ele responde: “contabilizando de forma dupla os efeitos anuais e os orçamentos plurianuais de cinco anos, com deslizamento anual. A Emenda Constitucional nº 95/2016, mais conhecida como a Emenda do Teto de Gastos mudou o Regime Fiscal a partir de 2017 alterando os Atos das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, artigos nº 106 a 114, limitando a evolução real das despesas autorizadas totais federais fixando tetos segmentados para cada um dos três poderes. No artigo nº 106 institui o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, e para os seguintes fixa regras objetivas. O artigo nº 108 pode alterar o método de correção dos limites a partir do “décimo exercício do Novo Regime Fiscal, p.ex. Antecipar pela Pandemia”.
Em outras palavras, sem descuidar do rigor fiscal, é melhor cair “na real”, do que continuar perseguindo uma meta fictícia como serão os orçamentos de 2021 e de 2022 e certamente ainda o será o de 2023. E imaginar que Guedes planeja ajuste fino (ano a ano) em meio a uma reforma fiscal que pode privar o Estado de receitas, sem que o alívio da carga tributária desperte o "espírito animal" do empresário e faça a roda da economia andar mais rápido, gerando o ajuste nas contas públicas.