O OUTRO LADO DA MOEDA
Como separar o joio do trigo
Publicado em 05/01/2023 às 18:03
Alterado em 05/01/2023 às 19:12
Com menos de uma semana de posse do governo Lula, quando nem houve a efetivação de todos os titulares dos 37 ministérios e muito menos dos comandantes das mais expressivas empresas estatais, é incrível a má vontade da mídia contra a nova administração, motivada, sobretudo pelos indicadores (como a queda do Ibovespa e alta do dólar), em sinal de descontentamento do “mercado” que torcia e apostava majoritariamente na reeleição de Bolsonaro.
Chega a ser desonesto e míope, como observou ontem a economista Mônica de Bolle, dos Estados Unidos, onde leciona Economia na Universidade John Hopkins, a insistência do rigor fiscalista em relação ao governo Lula dos mesmos que fecharam os olhos para as barbaridades cometidas sob o abuso de autoridade do ex-presidente Jair Bolsonaro, que usou a bel prazer a máquina e os recursos do Estado para tentar turbinar a sua reeleição. Que não veio.
Não se questiona a enxurrada de isenções e renúncias fiscais, bem como os gastos direcionados à classe média alta e aos ricos. Nos primeiros dias do governo Bolsonaro houve excessiva tolerância da mídia às agressões aos direitos humanos e outras conquistas sociais. Bastou Lula manifestar a intenção de abrigar os mais pobres no Orçamento para o mundo desabar.
Creio que a ingresso de bancos e corretoras no controle de sites de notícias deixou parte da mídia mal-acostumada, a relacionar o sobe desce do mercado como expressão do andamento da economia. Mais ainda: dão um peso excessivo a eventuais mudanças de marés na área financeira como reações exclusivas aos enunciados do novo governo.
Esquecem que a divulgação da Ata do Fed (o Banco Central) dos Estados Unidos, com visão de uma extensão mais longa do processo de alta dos juros de curto prazo, tem impacto sobre os mercados acionários e de commodities e moedas em todo o mundo. Sobretudo no Brasil, onde o fluxo de recursos internacionais ao Brasil (incluindo a flutuação de capitais brasileiros em paraísos fiscais) depende muito do diferencial de juros entre Brasil e EUA.
Ex-secretário da Receita critica farra
Em artigo publicado hoje no “Blog do Noblat” (do jornalista Ricardo Noblat), no site “Metrópoles, o ex-secretário da Receita Federal do governo de Fernando Henrique Cardoso, Everaldo Maciel, critica duramente o decreto presidencial do dia 30 de dezembro (assinado pelo presidente em exercício Hamilton Mourão, diante da fuga de véspera de Jair Bolsonaro), que reduz “à metade as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre receitas financeiras. Não vislumbro justificativa para isso, porém, o que causa perplexidade é que a medida iria impactar as receitas do governo que tomaria posse em 1º de janeiro”.
O decreto foi revogado pelo governo Lula no dia da posse, com a volta das alíquotas anteriores a 30 de dezembro. Mas o ex-secretário, que entende dos mecanismos entre o fato gerador e seu impacto no caixa, garante que o mal já reduziu os recolhimentos das grandes empresas desde o final de 2022. Entretanto, a anulação dos efeitos maléficos só se fará sentir a partir de abril.
Ou seja, haverá vazamento altamente regressivo e injusto de receitas para beneficiar o andar de cima até abril. Enquanto isso, quando o governo Lula se movimenta para proteger o andar de baixo leva chumbo dos economistas e agentes do mercado financeiro, com a pontaria dos CACs.
O artigo de Everaldo Maciel, que tem o título de “Uma tormenta tributária”, começa dizendo que “poucas vezes ocorreu uma combinação tão insólita de medidas como as que foram adotadas no final do ano passado”. Ele aproveitou para criticar, com desconfiança, o fato de que, assim como o governo criou cargos de adidos das Forças Armadas e da Política Federal no exterior, em 2021, no final do ano passado “foram criadas adidâncias em Bruxelas, Paris e Dubai.
Além de ser uma medida extemporânea, o espantoso é que os adidos designados foram justamente os titulares dos cargos de alto escalão da administração [da Receita Federal] que saía. Inoportuno e indecoroso”. [vale lembrar que a Receita trocou várias chefias depois que vazaram movimentações financeiras das “rachadinhas” do senador Flávio Bolsonaro, quando o filho 01 era deputado estadual e contratava assessores que lhe devolviam parte dos salários na Alerj, operação conduzida por Fabrício Queiroz.
Maciel considera que o governo agiu mal ao reparar o erro. Em vez de eliminar as novas adidâncias, extinguiu todas as “adidâncias tributário-aduaneiras”, cortando a possibilidade de troca de informações entre o que se passa nos países mais avançados. Para o ex-secretário, a medida se configura punitiva à Receita Federal, reforçando a percepção de um contínuo processo de sucateamento do órgão.
O preço da transferência
Mas a crítica mais contundente de Everardo Maciel diz respeito à Medida Provisória (MP) que estabeleceu no fim de 2022 “novas regras para preços de transferências, o mais controverso e complexo tema na tributação da renda”. Ele reconhece que “o modelo brasileiro é o mais simples do mundo, composto por seis artigos, e demanda muitos aperfeiçoamentos”.
Entretanto, a troca pelo modelo da OCDE, instituição à qual o Brasil, deseja se filiar, embora esteja sem qualificação em muitas normas ambientais e de IDH é ruim: a OCDE tem especial predileção por modelos tributários complexos e com elevado grau de subjetividade. Para Maciel, o aumento dos requisitos “reforçará as queixas quanto à complexidade do nosso sistema tributário”.
O “maior absurdo, todavia, é que o modelo somente entrará em vigor em 2024, recorrendo-se, contudo, a uma MP, que se sujeita ao requisito constitucional da urgência. Qual é a urgência?”. Para ele, a medida vai resultar numa chicane tributária: para tentar contornar a inconstitucionalidade, admitiu-se que empresas poderiam antecipar para 2023 a adoção das novas regras, embora não conheçam seu disciplinamento infralegal. É claro que só farão a antecipação se lograrem ganho, em prejuízo da arrecadação [uma forma engenhosa de tirar o tapete do governo Lula – e lá virão críticas sobre o déficit fiscal]. Mas, e “se a MP não prosperar, como ficaria a opção?”, indaga Maciel.