O OUTRO LADO DA MOEDA
Crise da Americanas é ponta do 'iceberg'
Publicado em 24/02/2023 às 14:05
Alterado em 24/02/2023 às 14:08
Há algum tempo venho alertando que o efeito-dominó da crise da Americanas pode ser tão grave a ponto de comprometer o PIB do 1º trimestre. Me incomoda a aparente despreocupação do Banco Central com o impacto direto (a empresa e seus empregados) e indireto (reflexos nos bancos credores e na miríade de grandes e pequenos fornecedores e prestadores de serviços nas lojas espalhadas pelo Brasil afora).
A Americanas é a maior e mais capilarizada varejista do país, e o Banco Central, que é o responsável pela estabilidade da moeda e pela higidez do Sistema Financeiro Nacional, com adequada liquidez e oferta de crédito, terá na 3ª feira a troca de dois importantes diretores: Bruno Serra Fernandes, da diretoria de Política Monetária, e Paulo Souza, da Diretoria de Fiscalização.
Serra se preocupou mais em dosar a taxa Selic (que estacionou em 13,75% ao ano em 3 de agosto de 2022) visando alcançar a meta de inflação de 3,25% + 1,50 ponto percentual de tolerância = 4,75%. Depois de estourar por dois anos seguidos, os tetos das metas de inflação de 2021 - era de 5,25%, deu 10,06%; e de 2022 - era de 5,00%, deu 5,79% (graças aos cortes de impostos da gasolina e demais combustíveis, da energia elétrica e das comunicações, nada a ver com a política do BC, descartada pelo ex-ministro Paulo Guedes), Serra seguia perseguindo a meta de 3,25% + 1,50 p.p.=4,75% para este ano. As projeções do mercado apontam para novo estouro, com o IPCA em 5,74%.
O salto da Selic, que é o piso dos juros do mercado e salto de 2% até 17 de março de 2021 e escalou a 9,25% em dezembro de 2021, com novo salto no ano passado a 13,75%, se não foi capaz de derrubar a inflação (pressionada ainda nos alimentos, que subiram 11,07% nos 12 meses terminados em janeiro, está provocando um estresse no mercado de crédito, com forte aumento da inadimplência entre as pessoas físicas e as empresas.
No caso das pessoas físicas, há 70 milhões de negativados. O governo promete para a próxima semana o detalhamento do plano “Desenrola” para o refinanciamento das dívidas, com perdão substancial de juros e multas, de modo a reabilitar o crédito das famílias. Mas no setor empresarial, com o aperto no crédito (juros mais caros, prazos mais curtos e exigências de maiores garantias), a situação se agravou muito após a Recuperação Judicial da Americanas. E os reflexos na cadeia de fornecedores foram muito fortes.
Como disse um empresário têxtil, que tinha a Americanas como um de seus bens canais de escoamento (nas lojas físicas e nas vendas pelas americanas.com), a situação ficou de “vaca desconhecer bezerro”. Ou seja, “os gerentes dos bancos pararam de amabilidades e estão querendo avaliar os impactos das Americanas no meu negócio até para renovar o capital de giro”.
Separar o joio do trigo
Há uma imensa cadeia de quase 10 mil fornecedores da Americanas ansiosa para ver como as dívidas serão pagas. Na última revisão dos advogados gestores da RJ, as dívidas (incluindo bancos e obrigações trabalhistas) montavam a R$ 47,9 bilhões. Mesmo considerando que a dívida mais que dobrou com os mais de R$ 20 bilhões não contabilizados junto a fornecedores, assumidas rotineiramente por créditos bancários (os bancos não mediam o risco, confiando no trio controlador da companhia, os bilionários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles), o fato é que os vencimentos são escalonados no tempo, de 90 a 270 dias, fora as dívidas de longo prazo.
Mas o tranco exigido para manter a liquidez da companhia, diante da disposição dos bancos credores de fechar a torneira oscila entre um aporte de R$ 7 bilhões no capital em ações conversíveis, como propôs o trio a um total de R$ 15 bilhões como querem os bancos. O trio se dispõe a recomprar R$ 12 bilhões em dívidas com desconto de 60%. A alternativa é esperar um ano para começar a pagar algo na RJ (180 dias prorrogáveis por mais 180 dias). Há empresas que podem ser afetadas fortemente.
Era para Serra e Paulo Souza já terem levantado os reflexos, sobretudo nos bancos expostos com dívidas diretamente à Americanas e dos que financiam os grandes fornecedores da varejista. Mas ambos parecem estar só arrumando as gavetas para a entrega das chaves em 28 de fevereiro. O presidente da instituição, Roberto Campos Neto, seguiu na companhia do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para a reunião do G-20, que começa este fim de semana na Índia. Talvez os dois se acertem sobre os substitutos e medidas para reduzir os juros bancários sem asfixiar a cadeia de fornecedores e os lojistas. Há outras empresas do setor, como a Marisa, em dificuldades. As dívidas em renegociação montam a R$ 260 bilhões.
O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, que está comandando a economia do país, disse, ao jornal “O Estado de S. Paulo” que está acompanhando os problemas de crédito na economia. A prioridade imediata é o programa “Desenrola”, que terá faixas de atendimento com custo fiscal diverso para as 70 milhões de pessoas negativadas. Para as empresas, o governo poderá lançar medidas compensatórias para garantir a liquidez. O objetivo é evitar uma crise de crédito, que se desenha desde o 2º semestre.
O BNDES já está estudando isso para a cadeia de fornecedores. O maior espeto é da Samsung (R$ 1,2 bilhão em celulares e aparelhos eletroeletrônicos), seguido pela Nestlé, com mais de R$ 219 milhões. Fabricantes de chocolates, biscoitos e panetones podem levar grande calote.
As indústrias de cosméticos e de artigos de higiene e limpeza foram muito afetadas, assim como as editoras de livros (um grupo de uma centena de editoras tem a receber mais de R$ 70 milhões). Ironia: ao entrar na seara dos livros, a varejista atraiu editoras que lhes viraram as costas e passaram a ser mais rigorosas com os tradicionais livreiros, que entraram em crise; agora editoras e livrarias estão no mesmo barco, em meio ao mar turbulento.
Cuidado com os golpes
Mas já há muitos golpes em sites de compra da “web” invocando a crise da Americanas para justificar “ofertas” imperdíveis de produtos deste ou daquele fabricante, que estaria fazendo liquidação às pressas para ter dinheiro em caixa. Tudo falso, a começar pelos montantes inflados dos calotes em alguns fornecedores. O grupo Tramontina, um dos citados, para justificar “liquidação de panelas” teria a receber mais de R$ 200 milhões (o montante é 50% menor e a Tramontina não está “batendo panelas” para angariar recursos).
Quem ganha se a Americanas encolher
Ao examinar o balanço da Mercado Livre no 4º trimestre de 2022, a Genial Investimentos chega a especular sobre o cenário do varejo brasileiro (compras físicas em loja ou via sites), caso “a Americanas reduza sua operação, ou até mesmo deixe de operar”. A 1ª conclusão é de que “seus fornecedores deverão passar a buscar outros compradores para suprir o volume que antes era negociado com a empresa”. Nesse caso, o Mercado Livre (que substituiu o patrocínio da Americanas no Big Brother Brasil 23) seria o mais apto a tomar a dianteira. Mas sem lojas físicas, a Via e a Magalu poderiam absorver mais clientes da Americanas que a gigante argentina que só opera na rede.
A Genial viu avanços. Mas, os novos entrantes no mercado de crédito, tentando atingir um mercado inexplorado pelos grandes bancos privados (Itaú, Bradesco e Santander), atingiram clientes com “score” de crédito baixo, e maior risco de inadimplência (não precificada na baixa Provisão para Devedores Duvidosos). Agora estão as “fintechs” em dificuldades, por terem fundos limitados para substituírem os titulares no mercado de crédito.
São nuvens pesadas num cenário externo que não ajuda, diante da disposição do Federal Reserve de elevar os juros nos Estados Unidos acima de 5% ao ano (ainda que em doses de 0,25 ponto percentual a cada reunião do Federal Open Market Committee – FOMC). O aperto nos juros nos EUA reduz o diferencial para que bancos e grandes empresas brasileiras tomem recursos no exterior para sustentar seus negócios aqui. A margem menor pode reduzir igualmente as operações especulativas de arbitragem de juros de capitais brasileiros que ficam no vai-e-vem para o Brasil. E muita gente considera que são investidores estrangeiros e não meros especuladores...
A preocupação da Genial Investimentos com a higidez do sistema financeiro nacional (no boletim desta 6ª feira, 24 de fevereiro ela indaga “Crise de crédito à vista?)” é um sinal de mudança no pensamento das casas de gestão de investimento. Há duas semanas, na avaliação da Conjuntura em 14 de fevereiro, a LCA Consultores já chamava a atenção para o risco de crédito detonado pelo caso Americanas.
A LCA advertia que “contornar o risco de eclosão de uma crise de crédito demanda cuidadosa ação das autoridades econômicas e dos maiores ofertantes de crédito para coordenar iniciativas e expectativas, de modo a evitar o crescimento de uma bola de neve de desconfiança”. A Genial estava mais preocupada em defender as metas de inflação e o altíssimo nível dos juros da Selic (13,75%). Com o IPCA-15 de fevereiro de 0,76%, descontada a taxa acumulada de 5,63% em 12 meses, o juro real da Selic subiu a 7,69%.
Hoje, o “Valor Econômico” fala com alarmismo da forte contração do mercado de crédito. No efeito colateral do caso Americanas, a situação está de “vaca desconhecer bezerro”, como se diz em Minas. Antes, quem descontava rapidamente na praça um Certificado de Recebíveis Agrícola (RCA) ou RCI (ligado a empreendimentos imobiliários) até junto a fundos, agora pena para ter liquidez, com juros maiores e prazos mais curtos nos refinanciamentos.
Como Carolina na janela
Quando ainda era moço, Chico Buarque fez uma belíssima música chamada “Carolina”. Num determinado ponto dizia: “O tempo passou na janela e só Carolina não viu”.
Pois o nosso Banco Central, ou melhor, o nosso Copom, está parecendo Carolina. Perdeu “uma janela de oportunidade", como definiu o ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, ao não reduzir os juros na reunião de 2023, em 1º de fevereiro. Está vendo da janela a crise de crédito se agravar rapidamente e só poderá fazer algo em 22 de março. Será um bombeiro que chegará apenas para o rescaldo do incêndio.
Um dos primeiros efeitos da crise de crédito e juros altos será refletido no PIB do 4º trimestre, que o IBGE divulga no próximo dia 2 de março. A LCA prevê contração de 0,1% no trimestre, reduzindo o avanço de 2022 a 2,9%.
No trimestre a Indústria deve cair 0,7%, a agropecuária salva a lavoura com crescimento de 2,7% (que não impede a queda de 0,5% no ano) e o setor de serviços (cerca de 70% do PIB) avançando 0,3% (4,2% em todo o ano), mas o comércio (que depende das vendas a crédito) teria caído 0,8% no trimestre, prevê a LCA, que vê carrego estatístico de +0,3% para o PIB deste ano.