Qual 0,5% é pior: o do déficit ou o do juro?

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Já escrevi aqui e repito. Parece conta de padeiro a cartilha do Fundo Monetário Internacional que recomenda déficit público primário (receitas menos despesas correntes, sem considerar os juros da dívida pública). Esses juros – usufruídos pelos bancos, que ganham gordas comissões na gestão dos fundos de investimento abertos e fechados nos quais ricos e milionários fazem aplicações que aumentam suas riquezas - geram despesas gigantescas ao Tesouro mas são ignorados pela opinião pública.

O Banco Central observa que cada um ponto de aumento (ou baixa) na taxa Selic (o piso dos juros do mercado) impacta em R$ 44,8 bilhões os gastos do giro da dívida pública. A taxa Selic subiu de 2% ao ano (taxa que vigorou de agosto de 2020 a janeiro de 2021) para 5,25% em agosto de 2021. E, desde então, iniciou escalada até 13,75% em 3 de agosto de 2022, permanecendo neste nível até 2 de agosto de 2023, quando começou a cair até os 12,25% determinados pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central em 1º de novembro. O ano deve fechar com 11,75% e 2024 em 9,25%.

Numa conta de padeiro, a redução da Selic de 13,75% ao ano (de agosto de 2022 a agosto de 2023) para 9,25% em dezembro de 2024, geraria uma economia mínima de R$ 201,6 bilhões. Sim, essa seria a quantia mínima que o Tesouro Nacional deixaria de transferir à camada mais rica da sociedade. Mas, como já observei que a Selic é o piso das operações do mercado financeiro (que opera com nível médio de juros três vezes superior ao da taxa Selic), o impacto de uma baixa de juros é bem mais acentuado para as famílias e as empresas.

É óbvio que uma baixa de juros é bem mais benéfica para o conjunto da sociedade do que a manutenção de juros altos. Entretanto, os manuais de economia sempre pregam que excesso de liquidez pode gerar descontrole inflacionário. Com a sabedoria adquirida quando era bancário no Banco Nacional, no fim dos anos 60 e da convivência com os parceiros das rodas de samba, mestre Paulinho da Viola sintetizou tudo quando disse que “dinheiro na mão é vendaval”.

Assim, se as famílias, empresas e governos não adotarem um mínimo de austeridade e controle dos gastos (incluindo os juros dos empréstimos), podem entrar em endividamento em bola de neve. Mas, se não faz sentido macroeconômico tolher os investimentos das famílias (na compra da casa própria, em substituição ao aluguel, ou em carro mais moderno, confortável e que consuma menos combustível) e das empresas (para ganho de eficiência e competitividade). Por que no caso dos governos, se pensa diferente?

Bons investimentos salvaram o país

Até poucos anos era praxe o FMI colocar investimentos dos governos na conta de gastos, igualados aos gastos com salários e com as despesas da Previdência. A ideia da privatização das estatais vem embrulhada nessa teoria de padeiro. Entretanto, só para citar dois casos, se não fossem os investimentos da Petrobras na prospecção de petróleo na Bacia de Campos, nos anos 70 e (já na virada do século), no pré-sal, o Brasil estaria mergulhado em déficits astronômicos nas contas externas.

Do mesmo modo, se não fossem os investimentos da Embrapa em pesquisa de espécies de grãos e leguminosas adaptados ao cerrado do Brasil Central, a partir de 73-74, o Brasil teria entrado em colapso na produção de alimentos quando as geadas do café, em 1975 levaram, junto com a erradicação destas lavouras, ao fim de mais de um século do colonato (que adotado junto com o fim, programado, da escravidão) e ao cultivo de milho, feijão e mandioca nas “ruas” do café pelas famílias dos colonos europeus.

A hiperinflação dos anos 70 e 80 tem muito a ver com o impacto duplo da escalada do petróleo (quando os preços triplicaram, em setembro de 1973, a Petrobras só produzia 15% do consumo do país) e o desarranjo da produção de alimentos básicos. O Paraná trocou o café pela soja e o milho e perdeu a condição de celeiro do Brasil para Mato Grosso. Em São Paulo, o café, que para fugir das geadas se consolidou em Minas Gerais, deu lugar à monocultura da cana de açúcar e à citricultura. Em setembro de 2023, graças aos investimentos em petróleo e agricultura, o Brasil acumula saldo comercial de US$ 58,7 bilhões em nove meses e de US$ 80,2 bilhões em 12 meses.

É bom lembrar que a 3ª ponta do tripé que sustenta os gigantescos saldos comerciais tem a ver com as exportações de minérios. E o grande salto do setor é originado das exportações do minério de ferro de Carajás (no Sul do Pará). As gigantescas jazidas, originalmente descobertas pela US Steel, foram compradas nos anos 70 pela Vale do Rio Doce. E a empresa, que era estatal, não só foi explorar a província mineral em plena selva, onde tem cobre e outros minerais, como construiu o gigantesco porto de Itaqui (MA) e a ferrovia Carajás-São Luís, com mais de 900km (viajei nesse trem quando a Vale ainda era estatal – o vagão tinha sido ocupado dois meses antes pelo vice primeiro-ministro chinês, Deng Xiao Ping, que firmou os primeiros contratos gigantescos de exportação para a China e depois liderou a aceleração do milagre chinês.

A contradição do investimento

Quando se faz um histórico da redução dos investimentos estatais no país, como se fosse um avanço, nota-se que os números (absolutos e relativos) encolhem com a privatização. Sem que o setor privado mantenha o ritmo. Talvez seja uma das causas do baixo crescimento por falta de produtividade.

O caso da Petrobras é emblemático. Desde o governo Temer (2016-18), após a estatal ter estourado seu endividamento (menos pelos desvios do “petrolão” e mais pelo efeito duplo da forte queda dos preços do petróleo depois da crise financeira mundial de 2008 e da escalada do dólar em 2015) seus investimentos foram paralisados e adotado, junto com o sistema de Paridade de Preços Internacionais (atrelando os preços dos combustíveis domésticos às cotações internacionais atualizadas pelo dólar) um plano de desinvestimento.

A estratégia de esvaziamento da Petrobras foi acelerada no governo Bolsonaro, com a proposta de venda de 50% do parque de refino e a futura privatização da companhia, que ocorreria se fosse reeleito. O PPI forçava a competição com os combustíveis importados. Das grandes refinarias, só a Landulpho Alves (BA), atual Acelem, foi vendida ao fundo Mubadala, dos Emirados Árabes Unidos, sem qualquer investimento. Por pressão do governo Lula, os EAU se comprometeram a novos investimentos na Acelem, inclusive com tanques em Mataripe (BA) para armazenar biodiesel (óleos de soja e algodão produzidos no Oeste da Bahia e no Sul do Piauí e Maranhão), para mistura ao diesel, reduzindo as emissões de CO2.

E a Petrobras, depois de arquivar o famigerado PPI e a adotar o abrasileiramento dos preços, com uso mais intenso em suas refinarias do petróleo mais leve do pré-sal), decidiu ampliar os investimentos para adaptar as suas refinarias (quase todas, com exceção da Abreu e Lima (PE) concebidas desde os anos 70 para usar o petróleo leve importado do Oriente Médio) ao uso mais intenso do petróleo nacional.

Além de Abreu e Lima, haverá mais investimentos nas refinarias do Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais (que estiveram à venda, sem compradores) e na Reduc (RJ) e nas quatro de São Paulo. O projeto que visa garantir o aumento da produção de diesel menos poluente (o diesel é o combustível cujo consumo excede à capacidade de refino do parque da Petrobras) vai gerar mais empregos nas obras e mais encomendas de componentes à indústria nacional.

Lula evitou a 'escolha de Sofia'

Como já ficou claro, é um erro demonizar os investimentos estatais. Quando o presidente Lula, no dia 27 de outubro, disse que não ia sacrificar investimentos de cunho social em nome do déficit primário zero (em relação ao PIB) no ano eleitoral de 2024, afirmando que 0,25% ou 0,50% não seriam um grande problema, as vozes conservadoras do mercado financeiro criticaram o governo e exploraram um eventual desgaste do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que manifestara a intenção de zerar o déficit no ano que vem.

Investimentos em infraestrutura ou para o bem-estar da população tendem a melhorar a produtividade da economia e tornam o ambiente humano mais feliz, e, consequentemente, mais disposto a produzir. Lula evitou a cair na “escolha de Sofia”, entre sacrificar este ou aquele investimento público para evitar déficit primário que não melindre os investidores nos títulos da dívida pública. Que, por sinal, estão desfrutando de juro real (descontada a inflação) de 7% no momento (depois de auferirem quase 10% na metade deste ano) e devem ainda ganhar mais de 5% de juro real ao fim de 2024/começo de 2005.

Lula (e Haddad) não irão afrouxar a vigilância sobre as contas públicas. O mercado financeiro, na pesquisa Focus divulgada nesta 2ª feira, está apostando que o déficit público primário, depois de fechar este ano em 1,05% (como na pesquisa anterior), fechará 2024 com déficit de 0,80% do PIB, também estável em relação à pesquisa anterior, mas com a Selic aumentando de 9% para 9,25%. Pois Lula e Haddad preferem baixar em 0,25% ou 0,50% os juros da taxa Selic. A economia seria muito maior que o déficit.