A venda da alma
Conheci a poetisa polonesa Wislawa Szymborska por acaso, folheando uma revista com alguns de seus poemas, antes mesmo de seus livros terem sido lançados em português
Conheci a poetisa polonesa Wislawa Szymborska por acaso, folheando uma revista com alguns de seus poemas, antes mesmo de seus livros terem sido lançados em português. Foi amor a primeira leitura. O terceiro livro de Szymborska lançado por aqui (Para Meu Coração num Domingo – Cia. das Letras) é como uma caixa de joias. Uma delas é o poema “Um pouco da alma”, que vai nos guiar, hoje, nessa reflexão sobre a alma e sua venda.
Diz a poetisa: “A alma vai-se tendo, ninguém a tem o tempo todo nem para sempre”. A alma é portanto um fazer-se, um processo. Mas “Dia após dia, ano após ano, pode passar-se sem ela”. O alerta é que é possível viver uma vida desalmada. Vale lembrar que o vocábulo grego para alma é psiqué e que psicologia é o saber da alma. Talvez, por isso, muitos processos de análise têm início com o paciente relatando uma sensação de vazio, de perda de interesse em tudo, um sentimento de distância da alma. Psiqué, que também é a palavra que designa borboleta, voou para longe. A análise, nesses casos funciona como a tentativa de um reencontro.
De que forma nos afastamos da alma? A poetisa nos guia pelo caminho. A alma “raramente nos assiste em tarefas chatas, como mudar a posição de uns móveis, carregar malas ou cruzar uma estrada com botas apertadas”. A alma não está onde a falta de sentido impera. Quando nossas escolhas racionais não levam em conta as necessidades do ser, acabamos nos transformando em feitores de nós mesmos. Arrastando móveis, como em penitência, cruzando a estrada da vida com botas apertadas. É possível até que nos acostumemos com esse incômodo, convictos de que esse é o único modo possível de viver.
Como nos lembra a poetisa “A alma é caprichosa, com desagrado nos vê na multidão, repugna-lhe a nossa luta por tal prevalência e o matraquear dos negócios”. Quando seguimos cegamente o padrão do coletivo, quando almejamos nos tornar máquinas de alta performance, quando nos tornamos uma dessas máquinas mesmo sem almejar, quando nos apavora qualquer possibilidade de desvio da norma pré-programada pela família, pelo dogma ou pelo padrão estético da multidão é exatamente aí que calçamos as botas apertadas. A alma é uma fazer-se singular, não um decalque de um modelo.
A alma abrange múltiplos estados de espírito, ou como costumava dizer a Dra. Nise da Silveira, os inumeráveis estados do ser: “Alegria e tristeza não são para ela sentimentos distintos, apenas na ligação dos dois ela está ao nosso lado”. Há poucas coisas tão agressivas à alma quanto nos tornamos fiéis de um culto a algum modelo prêt-à-porter de felicidade. A tristeza tem seu lugar na alma, ela é a sinalizadora de que a bota está apertada, de que é preciso tempo, pausa e reflexão. Se banirmos a possibilidade de nos entristecer, tornamo-nos insensíveis. Tudo se torna banal e o que é brutal já não nos afeta, nos acostumamos com o que é injusto para nós e brutal para com a nossa alma. Carregamos o fardo sem reclamar, ou nos habituamos a reclamar sem agir para transformar: e assim a alma voa.
Para nos defender contra uma inundação de tristeza não é incomum que, diante de uma situação traumática vivida em tempos muito remotos, tenhamos feito um tipo de promessa inconsciente a nós mesmos, algo como: “Isso nunca mais vai acontecer de novo comigo nem que para isso eu tenha que…” A frase é completada por cada pessoa de acordo com a intensidade de sua vivência, no entanto essas promessas inconscientes apresentam um traço em comum: funcionam como uma espécie de muralha protetora, como aquelas dos castelos medievais. Essas muralhas nos protegem contra a possibilidade de humilhação, de fracasso, de abusos, de abandono, enfim de desestruturação. São muralhas erguidas para defender a alma e de fato defendem, mas também aprisionam. Nossa poetisa vem mais uma vez em nosso auxílio, lembrando que a alma está ao nosso lado sempre que há uma ligação entre a tristeza e a alegria. Quando uma das duas é banida, a alma se afasta, ela não gosta de unilateralidade.
Num processo de análise com bom prognóstico, mesmo que os muros continuem firmes, aos poucos vão surgindo pontes por onde a alma pode circular e refazer a ligação com o mundo, agora de uma nova maneira. Já podemos nos libertar de uma promessa que nos ajudou a sobreviver, mas que com o tempo se tornou uma bota apertada na travessia da vida. A alma prefere as pontes, prefere o fluxo, a ruptura do isolamento. Aprendemos que podemos ir e voltar, de acordo com a nossa necessidade.
Por fim, a alma demostra sua predileção por determinados objetos: “Dos objetos materiais, gosta dos relógios de pêndulo e dos espelhos que trabalham assiduamente, mesmo sem ninguém olhar”. Enganar o pêndulo do relógio ou tentar congelar o espelho, são formas de afastar a alma. O espelho trabalha incessantemente, queiramos ou não. A alma habita, também, nossas rugas, a alvura dos cabelos e o tempo que não se contenta mais em exclusivamente produzir. A alma habita a pátina da vida.
A literatura e a mitologia estão repletas de narrativas de pacto com "o diabo" em troca de juventude eterna, destreza, riqueza ou poder. O que é negociado com o "diabo"? A alma.
Longe da alma objetificamos nosso corpo, a natureza, nosso tempo e nossas relações, que deixam de simplesmente existir e fruir para se colocarem a serviço de algo, de algum projeto, de algum propósito “maior”. A alma pode ser vendida apenas sob a condição de nos tornarmos instrumentos de algum projeto de grandeza. A alma habita amizades desinteressadas, as gavetas de entulho, o beijo, o abraço, a canção brega e a música erudita e todas essas desimportâncias que não valorizam na bolsa.
Finalizo a coluna de hoje com mais um lembrete de nossa grande poetisa: "Parece que tal como ela a nós, também nós, lhe servimos para alguma coisa”. Cabe a pergunta: o que estamos fazendo no dia a dia em nossas escolhas para servir a nossa alma? E o que, apesar de sabermos que é um desserviço a ela, insistimos em repetir? A alma agradece se você dedicar um tempo não apressado a essas perguntas. Parece que a alma prefere pontos de interrogação.
Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta