O cheiro da pitangueira

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Por FLÁVIO CORDEIRO

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Assisti, como muitos brasileiros, ao show natalino de Caetano Veloso neste último sábado. O tom paradoxalmente intimista do espetáculo - com a plateia a distâncias incalculáveis - foi dado não apenas pela voz e violão, mas sobretudo pelos depoimentos e memórias que Caetano entremeou com as canções. Uma dessas falas poéticas capturou minha atenção: foram as memórias de natal do menino Caetano.

Aparentemente não foram os brinquedos, mas sim a atmosfera lúdica e autenticamente brasileira, que ficou marcada na memória natalina da criança. Foram as delicadezas simbólicas dos presépios montados nas salas das casas de Santo Amaro que maravilharam o menino, com sua riqueza de imagens que misturavam a cena religiosa com aspectos mundanos da cotidianidade - imagens de jogadores de futebol, as bandas da cidade, artistas, bondes, imagens de pessoas ilustres recortadas de alguma revista, tudo isso junto, retratando o mundo, um universo em miniatura, complexo, vibrante, alegre e multicolorido. Pura fonte para a imaginação de uma criança.

O menino Caetano lembra até hoje do cheiro das folhas de pitangueira e do branco da areia espalhada sobre o piso de cerâmica das casas. O cheiro das folhas da pitangueira impregnou-lhe a memória natalina, tal como um dia a madeleine (um bolinho em forma de concha) descortinou a busca do tempo perdido pelo narrador do romance de Proust. Intrigantes sãos os caminhos da memória, tanto no que recordamos como naquilo que nos é dado esquecer.

A memória e o afeto estão intimamente ligados. Aqueles acontecimentos carregados de associações afetivas positivas são os fios com os quais tecemos a trama da nossa biografia, ao passo que as memórias traumáticas, carregadas de afetos negativos constituem os furos doloridos na trama da vida. Isso bem mostrou Jung em suas pesquisas, revelando que uma “simples" palavra poderia desencadear toda uma enxurrada de batimentos cardíacos, suor nas mãos, risos incontroláveis e outras reações a uma memória fortemente carregada de emoções. Essas palavras-chaves, que abrem as portas de nossos complexos, bem podem ser um cheiro, uma música, um lugar, uma situação ou até o vento no rosto. Carregamos todos um chaveiro cujas chaves de múltiplos tamanhos e formatos abrem tanto as portas das boas memórias quanto a dos acontecimentos doloridos.

Sobre os furos na trama, me recordo de outro depoimento de Caetano, este feito no documentário “Narciso em Férias”. Ele agora agora já não é mais a criança maravilhada com os presépios, mas um jovem encarcerado em um presídio durante a ditadura militar. Caetano recorda que as músicas que gostava naquela época, ficaram de tal forma associadas ao trauma da prisão, que ele até hoje não consegue tocá-las ou cantá-las. O afeto evoca, mas também embota a memória.

O filósofo Henri Bergson defendia que a memória é o fundamento de nossa subjetividade. A rigor, pensava ele, nós somos feitos de tempo. Nossa matéria são nossas memórias, nunca estamos totalmente no momento presente, pois nossas memórias, boas e más, são inseparáveis companheiras de viagem. Isso no entanto não minimiza a importância do presente em nossas vidas, ao contrário: é no presente, em nossos atos e omissões, que estamos construindo as boas ou as más lembranças que nos acompanharão em breve.

Considero especialmente importante lembrar disso neste momento de crise ética e humanitária que estamos vivendo em 2020 e que infelizmente seguiremos vivendo por um período ainda incerto ao longo de 2021. Que memórias estamos construindo hoje? De quais delas nos orgulharemos ou nos envergonharemos no futuro? De que cheiro nos recordaremos ao lembrarmos da maneira como nos conduzimos durante esse período sombrio da História e das consequências individuais e coletivas de nossos atos ou omissões? Nem todas as memórias têm cheiro da pitanga.

A última coluna do ano é dedicada a todos aqueles que perderam pessoas queridas para a Covid. Desejo que os bons momentos vividos com cada pessoa que não está mais presente se materializem nas histórias significativas e memórias que elas evocam. Essa coluna também é dedicada a Caetano Veloso, cujas canções fazem parte da boa memória de inúmeros brasileiros, a minha inclusive, e cujo especial de natal, trouxe beleza, poesia e esperança a tantos lares diante da indigesta obscuridade dos tempos atuais. Que as boas lembranças prevaleçam e que as más nunca deixem de constar nos livros de História.

Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta.