Intervalo de Indeterminação

Por FLÁVIO CORDEIRO

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Completa-se nessa semana um mês de isolamento social. Como muitos, eu também tive a minha rotina de trabalho alterada e até aumentada. A primeira grande mudança foi a transformação do consultório, que agora se tornou inteiramente virtual, exigindo dos pacientes e do terapeuta algumas adaptações significativas. Surgem questões de privacidade, confiabilidade das plataformas, interrupções de conexão, que alteram o fluxo das sessões, mas que nem por isso as inviabilizam. Ao contrário, noto que há um maior comprometimento com a terapia nesse período.

A segunda alteração foram novas e súbitas demandas dos pacientes diante desse novo e súbito cenário, que traz consigo um aumento da incerteza em relação ao futuro, medo, raiva, ansiedade e angústia para alguns, mas também tédio, desmotivação ou ainda uma sensação de estagnação para outros. No entanto, não tem sido incomum que essas questões emocionalmente carregadas estejam sendo acompanhadas por um mergulho mais profundo em questões essenciais, que a rotina atribulada e feroz do mundo pré-coronavirus vinha deixando de lado ou colocando para debaixo do tapete.

É como se diante de um cenário imprevisível e turbulento e da reclusão forçada, uma reflexão sobre o que é realmente importante para cada pessoa tenha podido aflorar. O que realmente importa, o que não pode mais ser adiado, contornado, evitado, surge com tintas mais fortes e evidentes.

Em Oração ao Tempo, Caetano Veloso canta “Por seres tão inventivo e pareceres contínuo, tempo, tempo, tempo, és um dos deuses mais lindos”. Há trinta dias abriu-se um intervalo naquilo que acreditávamos ilusoriamente ser contínuo; esse intervalo que se abre tem se mostrado inventivo e, para muitos de nós, poderá significar a invenção de novos “eus”. Muitas pessoas estão descobrindo, em mínimas coisas, novas possibilidades, novos prazeres, novas essencialidades. Estão sendo confrontadas com seus medos, mas também descobrindo novas formas de viver que nem desconfiavam ser possíveis e prazerosas.

Alguns descobrem que não conheciam sua própria casa e até mesmo uma poltrona onde nunca haviam sentado, outros que podiam trabalhar de forma remota sem grandes prejuízos, outros percebem que o que vinham fazendo não faz mais sentido, alguns descobrem que seus filhos são muito criativos, outros passam a valorizar o abraço e o carinho que não davam e se negavam a receber. Alguns descobriram que tinham muito a dizer e se autorizaram a falar em encontros e lives, outros estão se permitindo o prazer de serem avós, alguns estão descobrindo novas profissões, há muitos que estão vivendo novos amores virtualmente e planejando um grande encontro quando a quarentena passar. Tudo isso nesse breve intervalo de trinta dias, nesse intervalo de indeterminação.

Intervalo de indeterminação é um conceito central na obra do filósofo Henri Bergson. Segundo Bergson, esse intervalo nos diferencia profundamente dos outros animais. A grande maioria dos animais vive em estado de ação permanente e de reflexão nenhuma. Para o gafanhoto, não há intervalo entre o estímulo e ação: se tem fome, come, se tem sede, bebe, se é época de reprodução, acasala. Para o gafanhoto só existe a satisfação dos instintos e das necessidades orgânicas mais imediatas. Um gafanhoto não tem projeto, não tem passado, nem futuro, seu tempo é o presente. Sem esse intervalo de tempo entre o que instinto percebe e o agir, não há possibilidade de criação de nada novo; apenas de repetição de padrões. Um gafanhoto não cria, ele se repete desde que o mundo é mundo.

Bergson enxerga os seres humanos como dotados desse intervalo de indeterminação entre o perceber e o agir, entre a necessidade instintiva e o desejo mais elaborado. Mas adverte que é fácil perder essa abertura para o novo. Isso acontece quando nos tornamos criaturas de hábitos, condicionadas por demandas externas, agindo como ruminantes que aderem única e exclusivamente ao ritmo da manada. É precisamente o respeito e a vivência do intervalo de indeterminação o que nos permite fazer escolhas e exercer alguma liberdade em nossas vidas. Mas o que acontece quando esse intervalo é achatado?

Um dos efeitos colaterais do isolamento social das últimas semanas, para algumas pessoas, tem sido a constatação de que estavam vivendo uma existência quase sem intervalo de indeterminação: respondendo demandas, agindo sem refletir, vivendo sem sentir; sem tempo para aprofundar suas escolhas de vida, de consumo, de carreira, de gastos, de relacionamentos. Uma existência repetitiva e muito pouco criativa.
Na quarentena, algumas pessoas estão percebendo que a suspensão da atividade “normal” e o adiamento de muitas ações e decisões têm gerado, à fórceps, uma percepção mais profunda acerca de seu mundo interno, de suas necessidades, de seus desejos e daquilo que realmente importa e faz sentido. Abrem-se, a partir daí, as portas para o reconhecimento de novas possibilidades de ser; e tenho ouvido de algumas pessoas o relato dessa experiência, nem sempre alegre, mas necessária.

O intervalo de indeterminação é o intervalo do esperar amadurecer, do gestar novas possibilidades, de experimentar novas versões de nós mesmos, de criar e recriar, de deixar de nos repetir à exaustão. Agora que descobrimos que não somos senhores absolutos do tempo, talvez possamos nos dar a oportunidade de habitar nosso intervalo de não saber ainda, de germinar o novo e viver o presente como escolha e não como destino.

Dedico essa coluna ao querido mestre e filósofo Auterives Maciel, com quem tive o privilégio de aprender sobre Bergson ao longo do ano passado.

* Psicólogo e Psicoterapeuta de orientação Junguiana