50 anos de uma Cidade chamada de "Deus"

Por Walmyr Junior *

Cidade de Deus, o conjunto habitacional que marcou época na história do cinema brasileiro, está prestes a se tornar cenário das gravações do documentário “CDD 50 Anos”, em comemoração ao cinquentenário de um bairro emergido após a enxurrada de 10 de janeiro de 1966, noticiada pela imprensa da época como "o maior temporal de todos os tempos", que matou cerca de 200 pessoas, provocou mais de mil desabamentos em vários bairros do Rio e deixou mais de 30 mil desalojados, decretando estado de calamidade pública na cidade. 

Dirigido desde 2011 pelos cineastas Paulo Silva e JulioPecly (falecido em janeiro do ano passado, após uma parada cardiorrespiratória), o documentário, conta agora com o reforço de um time formado por DJ TR, Mateus Paz, e Bruno Rafael, todos alunos do curso extensivo universitário de cinema do Centro Loyola PUC - Rio e Igor Melo (fundador do coletivo de cinema CDD na Tela). Com título provisório, CDD 50 Anos pretende revelar uma comunidade ainda a ser descoberta pelo morador mais jovem, descrita (inicialmente) pelos primeiros habitantes do bairro.    

Pertencente ao bairro de Jacarepaguá, a área, batizada carinhosamente por Dom Hélder Câmara (recém-nomeado na época a Arcebispo das cidades de Olinda e Recife) de Cidade de Deus, em 1964, sob o investimento do Governo Carlos Lacerda na construção de um conjunto habitacional do projeto de urbanismo do BNH (Banco Nacional de Habitação), para a ocupação de (apenas) funcionários no setor de construção civil do antigo Estado da Guanabara na prestação de serviços para o desenvolvimento da Barra  da Tijuca, estaria sujeita às mudanças bruscas de planos. 

Deste modo, seguindo o procedimento emergencial de ocupação de desabrigados pelas enchentes de janeiro, já no então Governo Negrão de Lima, a CDD passou a atender a partir de 1º de março de 1966, famílias oriundas da Baixada Fluminense, e de favelas removidas das zonas Sul e Norte, dentre estas a Praia do Pinto, no bairro de Leblon; Macedo Sobrinho, no Humaitá; Morro da Catacumba, na Lagoa (área reflorestada onde atualmente está localizado o Parque da Catacumba)  e Esqueleto (onde funciona desde então o campus da UERJ) foram transferidas totalizando cerca de cinco mil casas construídas entre os dois governos, para a acomodação de 63 favelas removidas por inteiro ou parcialmente, como foi o caso do Parque Proletário da Gávea, existente em seu local de origem até hoje.

DJ TR, explica o fato pelo qual eclodiram os primeiros surtos de violência na comunidade:

“Naquela época, a CDD não estava projetada para atender a grande demanda de desabrigados pela enchente de 66. Pra ter noção, era uma única torneira para atender todas as famílias realocadas. Este crescimento desordenado gerou conflitos internos, onde cada favela ali representada despertou o sentimento de territorialismo, que talvez explique melhor o episódio do confronto épico entre “Mané Galinha” e “Zé Pequeno”, analisa. 

Mas nem só de problemas geopolíticos viveu historicamente a CDD, como narra Mateus Paz:

“Em 68, o saudoso Pe. Júlio Groten, em plena ditadura militar, não fez acepção à confissão religiosa de cada morador, e promoveu ações sócio-culturais voltadas para a inclusão de todos. E o gol improvável da intermediária de Josimar contra a Irlanda, na Copa de 86, numa cruzada de ângulo que garantiu a classificação do Brasil no primeiro grupo, demonstra que temos um passado digno do nosso orgulho”, afirma.

Reiterando este pensamento, Bruno Rafael destaca que a Cultura e a Literatura sempre andaram de mãos dadas na CDD:

“95, o Rap da Felicidade de Cidinho e Doca, se torna o hino de todas as favelas do Rio. 97, os Racionais MCs fazem seu primeiro show em uma favela no estado. 99, MV Bill chama a atenção da sociedade no palco do Free Jazz Festival, substituindo a pistola na cintura por um microfone durante a canção Soldado do Morro. 2001, a Globo exibe o curta Palace II, revelando a dupla Laranjinha e Acerola. 2002, da adaptação do livro de Paulo Lins, o filme Cidade de Deus, revela o ator Leandro Firmino no personagem de Zé Pequeno. 2007, o meu mano TR lança o livro Acorda Hip-Hop, contando as origens do Movimento Hip-Hop nos EUA e registra a importância da CDD neste contexto cultural em nossa cidade. Ou seja, decoramos a pagina cultural de arte e nossas crianças precisam saber disso”, enfatiza.

Tiago Melo descreve o impacto positivo que o cinema trouxe no cotidiano da comunidade:

“A experiência de trabalhar cinema aqui na CDD é mágica, porque a resposta do morador é muito rápida. E acreditamos que essa iniciativa de trazer o morador pra dentro da tela de cinema, será um acontecimento único na vida da comunidade, pois o protagonista principal é ele próprio, que há 50 anos dorme e acorda todos os dias aqui”, relata. 

Paulo Silva destaca a importância de ter o amigo Pecly como uma das referências principais do documentário, por servir de inspiração até para mentes notáveis como Marcelo Yuka:

“O Julio enfrentou problemas por ser pobre, negro, favelado, cadeirante e com Distrofia Muscular de Duchennne (doença degenerativa),e, em vez de ficar esperando a morte, foi atrás de seu sonho de ser escritor e roteirista. Fez vários filmes, dentre estes o “Enchente”, que conta a história de como a CDD sobreviveu em meio às fortes chuvas de 96, que deixaram cicatrizes profundas em seus moradores. Ele conseguiu emprego como roteirista na Rede Globo, e foi alguém que em sua simplicidade incentivou gênios como o Yuka a dar a volta por cima diante do impossível”, lembra emocionado.

Com previsão de lançamento para o final do ano, CDD 50 Anos conta com o protagonismo central de Leandro Firmino, e deseja através da tela, causar o início de uma relação intergeracional, onde o jovem local possa se orgulhar de sua história, e o mais velho se assuma como um autêntico grito narrando os contos de um bairro que pode em muito ensinar ao mundo.

* Walmyr Júnior é morador de Marcílio Dias, no conjunto de favelas da Maré, é professor, membro do MNU e do Coletivo Enegrecer. Atua como Conselheiro Nacional de Juventude (Conjuve). Integra a Pastoral Universitária da PUC-Rio. Representou a sociedade civil no encontro com o Papa Francisco no Theatro Municipal, durante a JMJ.