De assaltar o fôlego
Volta do 'Sai de baixo', agora no cinema, coroa faceta autoral da diretora Cris D'Amato | ***
Cheio de viço em duas frentes técnicas, a direção de arte (de Mário Monteiro) e os figurinos (de Sônia Soares), “Sai de baixo: o filme” combina despretensão e competência artesanal num experimento de “cinevisão” (é um longa-metragem decalcado de um humorístico da Globo) com um potencial de graça de assaltar o fôlego de quem se entregar, sem culpa, à diversão. Há algo mais na transposição do programa dominical (hoje reprisado nas tardes de sábado) que, de 1996 a 2002, recauchutou a fórmula de comédias sobre famílias encenadas em palcos, em uma estrutura de show de riso.
Essa algo mais vem de uma marca (com traços autorais) de uma campeã de bilheteria, a cineasta Cris D’Amato (de “SOS – Mulheres ao mar”), ainda não reconhecida pela crítica (e pela própria indústria) com o respeito merecido pelas proficiências estéticas que tem na construção de uma poética particular. Estamos diante de uma diretora que construiu uma obra sintonizada com o pleito do empoderamento feminino, sempre com heroínas que fogem das amarras do sexismo. É o caso da transformação que Cris promove na figura de Magda, o Mobral humano vivido por uma Marisa Orth no ápice do carisma, que não aceita mais o “Cala a boca!” que virou o bordão de seu marido, Caco Antibes, personagem que foi objeto de adoração na televisão e que, graças à inteligência cênica de Falabella, reafirma-se na telona, como uma mistura de David Niven com Zé Trindade.
É de Falabella (autor do roteiro, com a colaboração do olhar humanista de Sylvio Gonçalves) que vem o segundo toque de personalidade de “Sai de baixo”: o espírito de chanchada. Uma chanchada com um padrão anos 1950, à la Lulu de Barros (“O negócio foi assim”) e Victor Lima (“Massagista de madame”), com que os quiprocós da trama se sucedem. É uma linha narrativa que cresce em harmonia com a energia de levante feminino que Cris injeta em seus planos, também na figura da matriarca do Arouche, Cassandra (Aracy Balabanian, motor das tiradas autorreferenciais do longa), e da tia Jaula (papel que Tom Cavalcante constrói com picardia).
Produzido por Daniel Filho, o enredo é Oscarito na veia: saído da prisão, Caco aceita levar uma mala de joias em uma excursão da agência Vavátur até Foz do Iguaçu e Magda também, o que gera uma confusão entre as valises. Enquanto isso, o criminoso Banqueta (Lúcio Mauro Filho, com ares de José Lewgoy em sua vilania marota) tem conta a acertar com Caco nessa viagem, assim como sua irmã gêmea, Angelita. Na tela, a jornada é um mero gancho pruma sucessão de gags.
Como toda boa chanchada, o longa traz uma tônica de crônica de costumes, focada na falência da classe média, no apego a uma tradição que depende de dinheiro para ficar de pé. Entre um oceano de piadas, bem editadas, na montagem de Tainá Diniz e Eduardo Hartung, temos um estudo sociológico sobre a inversão da pirâmide econômica brasileira, com a emergência dos grupos antes tratados como invisíveis e que, agora, com o consumo, ganham subjetividade no discurso da representação da arte. É o caso de Ribamar (o segundo papel de Cavalcante), porteiro que, ao ganhar um apartamento próprio, passa a hospedar seus patrões do passado.
Candidato a sucesso de bilheteria, “Sai de baixo” passa indolor pelas retinas, mas bate, com discrição, em mazelas morais do país. Ele ainda depura a química entre seus intérpretes, com uma apoteose para Falabella, que em suas polivalentes atividades, por vezes, concentra no teatro um talento como ator que oxigena o cinema nacional, hoje afogado no naturalismo.
*Roteirista e crítico de cinema