Filmes sombrios no 66º Festival de Veneza
Carlos Helí de Almeida, Jornal do Brasil
RIO - O mundo não anda nada bem da cabeça. É o que insinuam os filmes exibidos ontem, segundo dia de competição do 66º Festival de Veneza. Em A estrada (The road, no original em inglês), o diretor australiano John Hillcoat (A proposta) exibe um cenário apocalíptico, no qual Viggo Mortensen (Um homem bom) tenta proteger seu único filho dos poucos humanos sobreviventes, que lutam por restos de comida e carne humana. Na sequência, Life during the wartime, do americano Todd Solondz, examina a consciência de três irmãs judias e de como elas lidam com solidão, laços sanguíneos, sexo e pedofilia, temas já explorados em um dos mais bem-sucedidos títulos do realizador, Felicidade (1998).
Espero que entendam o filme mais como uma variação do que propriamente um retorno às situações e personagens de Felicidade. É a forma como eu veria aqueles tipos humanos 10 anos depois desejou Solondz, ao lado da atriz Shirley Handerson e do diretor de fotografia Edward Lachman, durante a entrevista coletiva que se seguiu à projeção. Gosto da ideia de poder retrabalhar com personagens que me comoveram por alguma razão, mudando a cor da pele, a idade, o sexo deles e até os atores que os interpretam. A maior diferença é que Life during the wartime é um pouco mais político do que Felicidade.
Resumido pelo diretor como uma história de estresse pós-traumático , o filme acompanha as tentativas de reaproximação de Joy (Shirley), que acaba de se separar do marido pervertido, com as irmãs Helen (Ally Sheedy), uma famosa e solitária roteirista de Hollywood, e Trish (Allison Janney), divorciada do marido pedófilo. Renée Taylor, a divertida Ms Fine do seriado The nanny (1993-1999), faz uma ponta como a típica mãe judia, que vive num condomínio na Flórida, estado com a maior concentração de judeus aposentados. O clima pesado da trama, que alimenta-se de vibrações do 11 de Setembro e referências , é temperado pelo humor obsessivo-depressivo característico dos trabalhos de Solondz.
Em relação aos judeus, a Flórida é um ícone, é o epicentro da economia daquela população. É cheia de condomínios fechados e shoppings, uma concentração de parece atrair pessoas da comunidade judia americana que já tem certa idade. De certa forma, representa uma forma de descrever os Estados Unidos explicou o cineasta de 49 anos. Só em Singapura eu vi tantos shoppings e condomínios. O que me intriga é o que faz as pessoas trocarem o conceito de democracia, a liberdade de escolha, pela conveniência dos shoppings e o controle comunitário característico dos condomínios.
Mundo devastado
Diferentemente de Life during war time, não há qualquer sinal de humor no filme de Hillcoat, só muito pessimismo. A estrada é ambientado em um planeta devastado por um cataclisma, que nunca é mostrado ou explicado. Nele, um homem (Mortensen) e seu filho (Kodi Smit-McPhee) rumam em direção ao sul em busca de uma espécie de Éden deste universo desolador, no qual animais e árvores são cada vez mais raros e a prática do canibalismo virou regra entre os remanescentes humanos. O sujeito tenta proteger o menino, que nasceu após a tragédia mundial que extinguiu a civilização, dos terrores da nova ordem.
O filme é inspirado no livro homônimo de Cormac MaCarthey, autor do também obscuro No country for old men, traduzido para o cinema no filme Onde os fracos não têm vez (2007), dos irmãos Ethan e Joel Coel, produção ganhadora do Oscar. Hillcoat diz ter conseguido enxergar uma mensagem de otimismo na sombria trama do livro, na qual o instinto de sobrevivência é capaz de derrubar valores éticos ou morais. A estrada foi rodado em diferentes locações americanas identificadas com a desolação descrita no livro, como determinadas áreas de Nova Orleans, ainda não recuperadas depois do furacão Katrina, e autoestradas abandonadas do estado da Pensilvânia.
Em seus livros, MaCarthy costuma explorar o pior da natureza humana. A estrada fala sobre voto de confiança no homem, que é posto em dúvida a todo o momento ao longo da história disse Hillcoat, ao lado de Mortensen, Smit-McPhee e do roteirista Joe Penhall, responsável pela adaptação. É isso que o protagonista tenta ensinar para o filho, apesar de todas as situações contrárias. No final das contas, é o garoto que acaba confirmando a fé no homem, o que, para mim, é uma mensagem muito positiva.
Mortensen, que tem um filho de 21 anos, fruto do casamento com a cantora de punk rock Exene Cervenka, diz que se identificou primeiramente com o conflito paterno do enredo. No filme, o presente, cinza e esfumaçado, perturbado por incêndios e terremotos constantes, é entrecortado por fragmentos do passado. Neles, o homem sem nome era casado com uma bela mulher (Charlize Theron) e esta, quando a tragédia se abate sobre a humanidade, está esperando o primeiro filho do casal.
Em última análise, A estrada é uma bela história de amor entre duas pessoas, pai e filho. Tive a chance de conversar com MaCarthy sobre isso, durante as filmagens, em uma fazenda. Durante o nosso encontro, ele falava sobre o filho dele, e eu sobre o meu observou o ator. A história que ele criou nos propõe uma questão: o que aconteceria com o meu filho se eu não pudesse estar por perto? O livro fala de uma situação extrema, onde não há abrigo, comida, amigos, mas que sublinha um medo universal com o qual eu, como pai, me identifico muito.