Crônica: Foi ao balcão e pediu marafo

Por

Eduardo Goldenberg, Jornal do Brasil

RIO - No começo de janeiro, premido pelas mesmas promessas falsas de todo início de ano beber menos, comer menos, fumar menos e quejandos passei pela sacrossanta esquina da Rua Caruso com a Haddock Lobo logo pela manhã, durante o primeiro passeio do dia com meu glorioso vira-latas, o Pepperoni. Saudou-me o seu Cláudio, assíduo no pedaço, sentado em uma mesa na calçada, erguendo o copo cheio de batida de gengibre e dizendo, baixinho (prenúncio de segredo sempre fadado a virar manchete na Tijuca):

Já soube do Moisés?

Eu, mandando o cachorro sentar, disse que não. Ele foi taxativo:

O Brasil te conta à noite. Ele tem os detalhes sórdidos.

Não preciso lhes contar como foi arrastado o meu dia. Eu ansiava pela chegada da tarde e consequentemente da chegada do bardo tijucano ao botequim (ele mora rigorosamente em cima do bar, é uma questão de descer um lance de escadas), o síndico perpétuo daquele trecho da rua, o fundador, entusiasta e general da banda do bloco carnavalesco Se me der eu como, cuja porta-bandeira, há anos, é a Olga, moradora nativa da Rua do Matoso, o boa-praça dono do latifúndio representado pela nesga de balcão à direita de quem entra no Bar do Marreco. Quando os sinos da Igreja dos Capuchinhos badalaram, eu desci (sem o cachorro).

Seu Brasil, em traje de gala (alpargatas sem meia, bermuda e camiseta), recebeu-me de braços abertos. Estendeu-me o copo americano cheio de cerveja e, diante da minha negativa e justificativa, foi implacável:

Vai trair a confraria?

Diante disso, diante dessa sentença em tom de ameaça, dei o primeiro gole (que caiu bem pra burro), pousei o copo no balcão embaçado, acendi o cigarro e disse, pondo a mão em seu ombro esquerdo:

Conta aí, seu Brasil. O que é que houve com o Moisés? Seu Cláudio comentou por alto...

O velho abriu um tremendo sorriso. Esfregou as mãos, enxugou a testa com o pano de prato de sempre que fica pousado no ombro direito como um papagaio imaginário e contou-me, com riqueza de detalhes (seu Brasil é detalhista, confiável, preciso do início ao fim), a história envolvendo o Moisés, morador da Santa Alexandrina que, vira-e-mexe, bate ponto no Bar do Marreco. Moisés é uns 10 anos mais novo que o seu Brasil, filho de pais judeus ainda vivos, casado com uma não-judia responsável por um tremendo quiprocó familiar, pai de cinco filhos homens e médium poderoso, dizendo-se adepto da umbanda, embora não seja exatamente um praticante tem seus ritos particulares e é feliz desse jeito. Recebe seus caboclos muito de vez em quando, bebe industrialmente, fuma dois maços por dia, está aposentado e, pela primeira vez em muitos anos, abriu mão do réveillon no Bar do Marreco. Seu Brasil me contou, às gargalhadas, a história da virada do ano do Moisés.

Convidado por um casal de amigos de longa data, moradores da Barra da Tijuca a quem raramente visita, Moisés não achou tão ruim assim a ideia de passar o réveillon no Leblon, num dos mais elegantes e festejados restaurantes da cidade, desses grifados, disputados, caros de doer. Diante do primeiro argumento da mulher, que foi contra, foi de raiz:

Eles estão pagando tudo, mulher! Sossega!

Conforme haviam pedido ao Júnior, taxista que lancha todas as tardes no Bar do Marreco, foram, de cortesia, até o Leblon na noite do dia 31. Ele de terno e ela de vestido longo, ambas as peças alugadas em uma loja tradicional do Largo da Segunda-Feira, chegaram pontualmente às 10 da noite no restaurante, ricamente decorado para a ocasião.

O casal infinitamente mais bem-sucedido em matéria de dinheiro já os esperava à mesa. Foram efusivos com a entrada triunfal do casal tijucano.

A noite ia que era uma beleza. Entrada, pães, champagne, o primeiro prato já servido, a ceia prometendo quitutes inimagináveis para um zona-norte, a conversa fluía como fluía a bebida até que, por volta das onze e quarenta, a mulher do Moisés percebe, em pânico, o marido tirando os sapatos, vigorosamente, de olhos primeiro virados e depois fechados. Foi tudo muito rápido. Moisés começou a bater com os talheres no prato e nos copos (quebrou tudo), levantou num sem-pulo e deu de sair dançando e cantando pelo salão do suntuoso restaurante, já cavalo de um de seus caboclos de fé. A mulher tentava explicar ao casal de amigos que aquilo era esporádico, mas a assistência toda as mulheres emperequetadas, os homens de passeio completo, garçons, barman já se encontrava em polvorosa.

Moisés foi ao balcão e pediu marafo todos ouviram.

Foi preciso que o cozinheiro, cearense e também do santo, traduzisse a coisa. Na falta da cachaça, serviram grappa e o caboclo não gostou. Tentaram rum, o caboclo cuspiu no chão. A bagaceira foi bebida de uma só vez mas não agradou.

Gim! Quero gim! disse com as mãos forjando um arco-e-flecha.

Atenderam.

Um senhor em estado de choque depois de ouvir Moisés, ainda rodopiando pelo salão, pedir um fumacê, ofereceu o puro habano que fumava, elegantemente, o que foi rapidamente aceito pelo caboclo que riscava ponto no tapete persa do estabelecimento com os dedos dos pés. Formou-se, em seguida, a princípio informalmente mas em segundos organizada pelo maïtre, uma enorme fila diante do gigante da Santa Alexandrina de gente querendo receber conselhos, passes e outros babados.

Uma ou outra socialite gritou por socorro e ameaçou chamar a polícia. Uma velha gorda desmaiou e foi socorrida pelo próprio Moisés, ainda virado no caboclo, que foi aplaudidíssimo pelos presentes, fazendo com que o marido da rolha-de-poço enterrasse notas de 50 no bolso da calça de Moisés.

O troço todo durou coisa de 10, 15 minutos, tempo suficiente para que Moisés, já em plena consciência, brindasse à chegada do ano novo já à mesa e já calçado.

Uma loura, chorando muito, e que fora intensamente abraçada e apalpada pelo caboclo durante o passe, gerando uma crise repentina de ciúmes no marido, agradeceu ao maïtre emocionada:

Ótima idéia, essa a de vocês, de chamarem um médium para o descarrego! Muito típico! A-mei!

Na saída, o que ocorreu por volta das duas da manhã, a massa empazinada, já completamente embriagada, cercou Moisés e sua mulher pedindo cartão, telefone fixo, celular, contato, o diabo. Gozador que só ele, Moisés deu o telefone do orelhão que fica diante do Bar do Marreco e indicou o nome do seu Brasil:

Meu cambono há mais de 30 anos... disse, seriíssimo.

Seu Brasil me contou, nós já na sexta garrafa de cerveja, dobrado de tanto que ria, que o orelhão não parara de tocar desde a manhã do dia primeiro.

Tijuca, em estado bruto!