Em visita ao Rio, Donato Sartori fala sobre a arte secular de rostos

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Daniel Schenker , Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - A máscara teatral, que encobre parcial ou por completo o rosto do ator, intenta, na verdade, potencializar sua presença em cena ao obrigá-lo a se expressar de modo mais contundente através do corpo, rompendo, dessa maneira, com antigos vícios declamatórios. É o que constatam Donato Sartori e Paola Pizzi, diretores, respectivamente, do Centro Maschere e Strutture Gestuali e do Museo Vivente da Máscara, que chegam ao Rio para apresentar, nesta terça-feira e quarta-feira no CCBB, o seminário Máscara, rito e festa, às 18h30, com entrada franca, e supervisionar uma oficina de confecção de máscara teatral, ministrada por integrantes da companhia e agendada para os dias 15 e 24, das 9h às 12h30, na sede do Moitará, na Lapa.

Coautor (com Bruno Lanata) de livros como Artre dela maschera nella commedia dell'arte e Maschera e maschere, Sartori se envolveu com o mundo da máscara por influência de seu pai, Amleto Sartori.

Faço parte de uma categoria de gente que se define como filho da arte. Quando era criança, atores iam à minha casa. Não entendia nada, mas respirava aquela atmosfera lembra Sartori, que perpetuou a atividade de Amleto, precocemente falecido aos 46 anos.

Recuperação pela comédia

O efervescente contexto de 1968, porém, provocou mudanças no trabalho de Donato.

Eu estava em Paris, na escola do (ator e mímico) Jacques Lecoq, e comecei a me envolver com os movimentos políticos e culturais da época. As máscaras tradicionais passaram a me interessar menos recorda Sartori, que se aproximou de encenadores como Jerzy Grotowski e Eugenio Barba. Lidava com materiais sólidos, como ferro e aço, em minhas esculturas e Lecoq disse que seria interessante poder manuseá-las. A partir daí, mudei minha percepção. Não quis mais expor as obras nos museus ou destiná-las simplesmente à comercialização.

A parceria entre Amleto Sartori e Lecoq foi determinante para o desenvolvimento dos estudos sobre o universo da máscara ao longo do século 20.

Lecoq foi convidado para dar aula na Universidade de Pádua em 1948. Quis confeccionar máscaras com os alunos e acabou conhecendo meu pai, que o auxiliou na tarefa e criou um tipo de máscara destituído de fisionomia a partir de seu rosto detalha o teatrólogo. Não era um retrato, mas uma idealização. Foi assim que surgiu a chamada máscara neutra.

Populares no passado, as máscaras abandonaram temporariamente a cena depois do resgate da commedia dell'arte promovido pelo dramaturgo Carlo Goldoni, no século 18. Só voltaram à tona graças a reivindicações do encenador Gordon Craig.

Foi então que Jacques Copeau fundou, em 1913, o Théâtre du Vieux Colombier, de onde saíram profissionais determinantes ensina o teatrólogo, que aproveitará a estadia para assistir a Acorda, Zé! A comadre tá de pé, montagem do Grupo Moitará, que também trabalha com máscaras, em cartaz no CCBB. É preciso dizer que Konstantin Miclashevsky recuperou, na Rússia, a tradição da commedia, seguido por Pierre Louis Duchartre.

A commedia dell'arte, no entanto, está longe de figurar como o marco zero de toda essa história. A origem dos personagens clássicos da commedia, segundo Sartori, é a chamada farsa fliacica, praticada durante os séculos 4 e 3 a.C.

Primeiramente havia as figuras do servo, do rico, do velho, protótipos dos tipos da commedia destaca Sartori, que em breve lançará um novo livro composto por material inédito sobre as máscaras. A farsa se expandiu e entrou em contato com a cultura romana, influenciando a fábula atelana. Toda essa filiação não é muitas vezes reconhecida no mundo acadêmico devido à ausência de documentos de comprovação. Mas há outro tipo de registro, o oral.

O primeiro contrato da commedia dell'arte data de 1545, época posterior à Idade Média, marcada pelo domínio da Igreja, quando os cômicos já realizavam seus trabalhos.

Os padres organizavam as representações. Escolhiam habitantes e, não por acaso, destinavam os papéis mais relevantes aos ricos assinala. O povo sentia-se alijado. Até que surgiu Angelo Beolco (ator veneziano, morto em 1542), que começou a falar de temas universais em dialeto veneziano, acessível a todos. O público passou a frequentar teatro e a se reconhecer nas histórias. Ocorreu uma ruptura com o teatro eclesiástico e a explosão da commedia dell'arte.

A partir daí, os atores se especializaram em personagens específicos.

Imagine quantos Arlequins passaram a existir. Então, criou-se o costume de cada um levar o nome do próprio ator. A identificação dava-se dessa maneira explica o teatrólogo.

Sartori aproveita para corrigir a associação direta que normalmente se faz entre a commedia e o jogo de improvisação dos atores.

Na verdade, cada ator forma a sua bagagem e escolhe o que fazer de acordo com a reação do público esclarece. Pode até dar a impressão de estar inventando algo na hora. Na verdade, trabalha a partir de um repertório já formado.

Origens incertas

Donato traça um paralelo com o trabalho capitaneado por Dario Fo sobre o mistério bufo.

Fo desenvolveu uma série de esquetes sobre o mistério bufo. Hoje ele já contabiliza quase 60 horas de esquetes. No momento da apresentação, conta com um vasto material para escolher revela.

As origens de personagens célebres, como Arlequim e Pantaleão, ainda são incertas.

Há algumas hipóteses relacionadas ao surgimento de Pantaleão comenta Donato. Existe a igreja de São Pantaleão, em Veneza, cidade cujo símbolo é o leão de pedra da Praça San Marco. Pantaleão é plantar o leão ou plantar a bandeira. Além disso, quem era o rico em Veneza? O hebreu continua, evocando o Shylock, de O mercador de Veneza, de William Shakespeare.

As informações sobre Arlequim, figura que acabou sendo divulgada pelo ator Tristano Martinelli, na segunda metade do século 16, surpreendem:

Arlequim tem descendência romana. Remete à época pré-cristã, à figura daquele que administra o lugar para onde vão os mortos. Mas a localização debaixo da terra também remete à semente, ao que gera a vida. Com o cristianismo, o personagem foi associado à figura do diabo. O objetivo era marcar oposição contra as religiões pagãs. A cavalgada dos mortos seria liderada por um anjo cujo nome aproximava-se ao de Arlequim.

As mudanças provocadas pela Igreja permanecem em vigor.

Antigamente, as pessoas se comunicavam com os mortos. De determinado momento em diante, só o religioso poderia ter acesso às almas. Foi inventado o purgatório. E a noção de culpa observa.