Joca Terron lança 'Do fundo do poço se vê a lua'
Paulo Scott e Victoria Saramago*, Jornal do Brasil
RIO - A brutalidade da aflição
por Paulo Scott
Há os que preferem confundir o peso de uma estrutura narrativa complexa com miscelânea na qual o escritor expõe gratuita e ostensivamente sua pretensa virtuosidade. Imagina-se que para dividir uma leitura de outra seja necessário reconhecer a premissa de que a linguagem se vivifica (é prudente evitar o emprego da expressão se renova ) no incômodo ímpeto da superação.
Ainda assim permanecerá ao que escreve a opção de não correr riscos, de agradar aos que esperam as facilidades, como se a lógica natural das coisas se mantivesse atrelada à demarcação fria dos roteiros acadêmicos, ao eco do que já foi consagrado, às saídas tênues que desembocam no coloquialismo ou no enquadramento uníssono da voz daquele que narra. Há, porém, os que admitem a profusão caótica que, ao se resolver, é parte inseparável das realidades.
Preposição do duplo
A arte, no seu acúmulo inevitável, acaba por deli mitar caminhos dos quais é bastante difícil fugir; com a literatura não é diferente. Nisso é possível descobrir a proposição do duplo um dos mais antigos mitos do universo literário. Esse ideal, o ciclo do duplo, o abandono, o retorno, a onipresença asfixiante entre dois irmãos gêmeos, estigmatizando-se na circularidade da qual não conseguirão escapar enquanto um deles viver (impossível não lembrar de Caim e Abel), mas antes deles a voz fabulosa da mãe morta instantes depois do parto, alicerçam o romance (de muitas perspectivas) de Joca Reiners Terron. Do fundo do poço se vê a lua, empreitada bem-sucedida desse autor que, tanto na prosa quanto na poesia, consegue criar, com rara densidade, dicções e paisagens capazes de sobreviver à leitura dos textos que produz.
Linguagem versátil
A história começa em São Paulo e se conduz ao Cairo, misturando, em linguagem versátil e poética, fragilidades e resiliências da natureza humana, para contar o fracasso, a opção inexorável de fracasso, de um casal cheio de idiossincrasias (ele um ator marginal, ela uma militante de esquerda, ativa nas tarefas de guerrilha contra o regime militar instaurado no Brasil em 1964, vitimada pela repressão que se sucedeu, usando nomes falsos ninguém sabe qual seu nome verdadeiro, nem mesmo o pai das crianças) e sua continuidade lúdica, embora aterradora em muitos momentos, desdobrada no conflito entre os filhos gêmeos univitelinos. Se há excentricidade no romance de Terron, embora não pareça esse o termo adequado, é atributo que se afirma como condição de um estado de recalque, de predominância e luta por alguma razão, vivido com intensidade por um dos gêmeos, Wilson, na tentativa de se libertar do irmão, William, e por conseguinte de si próprio e dos pais.
Trata-se de uma abordagem muito bem elaborada da identidade e, a partir dela, da crise, da vagueza, que podem acometê-la. Nada é gratuito neste No fundo do poço se vê a lua. A escolha dos nomes para os protagonistas William/Wilson, além de fazer soar o excesso da circularidade aqui já mencionada, homenageia o célebre conto de Poe. A identidade só se viabiliza pela diferença; se não ocorre de antemão (ou se resta prejudicada) há de ser estabelecida. A brutalidade desencadeadora da aflição de um irmão com relação ao outro começa na própria sombra (a dúvida do equilíbrio) de um nome sobre o outro a provocação aberrante do pseudônimo (vindo da combinação; um aparato alegórico, kitsch, expoente em par) que os une, destaca, cercando-os de hermetismo, já que um existe no outro, além das distâncias, das rupturas de forma, memória e da morte.
Universo pop
Bem realizada também é a referência (capaz de assentar a vertiginosa ilusão de tudo que é inatingível) às figuras de Liz Taylor e Cleópatra. A opção calculada pelo emprego de clichês (embora isso não se estenda à linguagem) e a reutilização de fragmentos de um universo pop específico, datado e canonizado, funciona como um tipo de ponte mágica, decupada, parte de uma grande ironia, de modo a facilitar (ou dificultar, já que a não-facilidade é elemento essencial da boa literatura) a conexão entre dois mundos tão distintos, a realidade ocidental de São Paulo e a, não menos desafiadora, do Cairo, entre duas pessoas sem isonomia, apesar da aparência estagnada na impontualidade dos que estejam de fora tentando entender o que há a mais na dupla e na sua maldição.
O escritor Joca Reiners Terron funda uma estrutura narrativa complexa, passa longe da tentação das miscelâneas, e, ao mesmo tempo, reconfigura uma das temáticas mais inquietantes da literatura universal.
Do fraterno, nasce a fratura
por Victoria Saramago
Muita tinta foi gasta nas polêmicas em torno do projeto Amores Expressos, tanto do que diz respeito à seleção dos autores envolvidos quanto às suas fontes de financiamento. Agora, três anos depois das viagens dos 20 autores a diversos cantos do globo, e com parte dos romances previstos já publicada, é de se perguntar, independentemente das objeções levantadas na época, quais seriam os resultados propriamente literários da iniciativa.
Um aspecto fundamental é o fomento dado pelo projeto a uma tendência, identificável na prosa contemporânea brasileira, a ultrapassar as fronteiras e os temas nacionais, isto é, a uma certa internacionalização temática. Somem-se as histórias de amor que são requisito da proposta motivo não exatamente original, mas sempre produtivo bem como os blogs mantidos pelos autores ao longo da temporada fora: no nosso atual contexto, os fatores dados pelo Amores Expressos tornam suas possibilidades, no mínimo, promissoras. Vejamos como Joca Reiners Terron as explora em Do fundo do poço se vê a lua.
Mais de um século após o imperador dom Pedro II ter trazido de suas viagens ao Egito as múmias que hoje jazem na Quinta da Boa Vista, Terron volta a se debruçar sobre o país, mais precisamente sobre sua capital. Não tanto atrás de múmias e faraós, mas da faceta decadente dos antigos hotéis e cabarés de um Cairo islamizado e supersticioso. Cleópatras existem, decerto, muitas delas: na releitura hollywoodiana estrelada por Elizabeth Taylor nos anos 60, no combalido circuito egípcio da dança do ventre, nas fantasias de uma transexual brasileira que passasse dos sonhos cinematográficos para a brutalidade do machismo islâmico.
Pois é este o Egito que existe para a narradora Wilson/Cleo, ao trocar quaisquer resquícios de uma identidade masculina em São Paulo para a plena feminilidade no Cairo, ou ao optar por uma carreira de sucesso como dançarina do ventre em épocas nada propícias à prática. É este o Egito que Cleo já conhece bem demais para, percebendo as ameaças que a cercam, tentar rever o irmão gêmeo perdido há décadas. Deste Egito, entretanto, o irmão William não tem o menor conhecimento: William não passa de um brutamontes, limitado a se embebedar e a esmurrar quem quer que ameace a(o) irmã(o).
Está montado o enredo. De um lado, a trajetória picaresca da narradora até o apogeu como Cleópatra VIII no Club Palmyra. De outro, a viagem de William para reencontrar a(o) irmã(o) e reconstruir sua história. Se a linha narrativa duplicada não é mero acaso, também não o é o fato de os irmãos serem gêmeos absolutamente idênticos, como tampouco é casual que seus nomes sejam William e Wilson (lembrem-se do emblemático conto de Edgar Allan Poe, William Wilson ), ou que, quando jovens, tenham encenado obras do romântico alemão Richter (mais conhecido como Jean Paul) baseadas no doppelgänger. Pois doppel significa duplo ; e gänger, ambulante, ou aquele que vai. Em menos palavras, a figura do duplo.
Tema já de larga tradição na literatura ocidental, da Bíblia a Machado de Assis, o duplo funciona, no romance em questão, como um eixo ao redor do qual giram os eventos. De maneira quase obsessiva e por vezes mais explícita do que seria necessário, Terron vai traçando uma rede de duplos que remonta ao mito grego de Castor e Pólux, discute problemas da identidade sexual, passa pelo título do romance e termina por se cristalizar no próprio formato do texto. Pois, ao dar à narradora Cleo a voz e ao personagem William a ação, o que está em jogo é a duplicata, nem sempre evidente, de narrador e personagem e esse é, certamente, um dos aspectos mais fascinantes do livro. É a peça interpretada pelos gêmeos, O som de minha voz em sua boca, elevada à dupla potência.
Outra duplicação significativa é a que se dá com o par livro/blog. Ainda que todos os autores do projeto tenham mantido blogs, o de Terron é especialmente recheado de episódios, pessoas e locais que depois apareceriam no romance, criando uma dinâmica intrigante: o diário de viagem ganha por vezes uma tonalidade ficcional, e o romance por vezes ganha traços de diário de viagem.
Seria inclusive interessante pensar se a narrativa de Do fundo do poço se vê a lua, mais regular e próxima do que poderíamos chamar realismo, não estaria diretamente ligada a esse diálogo com o blog/diário de viagem. Trata-se de algo relevante numa prosa que, como a de Terron, sempre pendeu mais para o experimentalismo. Por mais que a trama continue povoada de bizarrices, outsiders, tiradas divertidas e passagens mirabolantes.
E por mais, também, que algumas incongruências saltem aos olhos. Por exemplo, mesmo que seja montada toda uma cronologia peculiar na biografia de Cleo, nenhuma contorção cronológica explica que a personagem tenha descoberto, nos anos 70, uma fita de VHS guardada já há possivelmente uma década, quando o VHS só chegou ao Brasil nos anos 80.
Nada, porém, que prejudique o desenvolvimento de uma trama que, como Terron afirmou em entrevista, está calcada num amor fraternal bastante complexo, diga-se de passagem. Porque é deste sentimento fraterno, afinal, que nasce a fratura tanto a fratura emocional de Cleo/Wilson quanto as pancadarias de William, e quanto o reflexo quebrado da lua no fundo do poço em que Cleo se encontra.
* Paulo Scott é romancista e poeta, autor de Ainda orangotangos e A timidez do monstro.
Victoria Saramago é autora do romance Renée esfacelada e mestre em literatura pela Uerj.