'Biutiful', com Javier Bardem, expõe a angústia da morte
"Meu amor, o que você vê não são estrelas. É o seu sistema nervoso." Uxbal, personagem de Javier Bardem em Biutiful, está fixado no chão e de lá não quer sair. A mulher que pensa olhar estrelas é sua ex-mulher, mãe de seus filhos, uma pessoa bipolar que olha cima despreocupada em tropeçar nas pedras que sempre existem no meio do caminho. Mas Uxbal é o personagem que, a despeito de todas as preocupações mundanas, foi abençoado com o dom de ver além. De olhar para o grande cenário, observando tudo de cima sem, com isso, descolar seus pés da terra que o sustenta. O drama que concorreu ao Globo de Ouro como Melhor Filme Estrangeiro e muito possivelmente vai ser indicado ao Oscar na mesma categoria é uma história sobre como se pode começar do fim. Portanto, segure forte na mão de Uxbal porque esse caminho não vai ser fácil, nem feliz, mas será sim muito bonito de se ver, mesmo sem as estrelas.
Alejandro González Iñárritu, conhecido diretor de épicas tragédias privadas - Amores Brutos, 21 Gramas, Babel - faz neste filme um movimento inverso ao que ele costumava realizar nos vários anos de parceria com o roteirista Guillermo Arriaga. Em lugar de costurar vários personagens em histórias que se cruzam, ele usa um só personagem para costurar várias histórias.
Uxbal, nosso condutor nesse drama, é um homem de poucas ambições e sobrevive de pequenas comissões que ganha em vários setores da cadeia produtiva de produtos piratas. Se relaciona passionalmente com as comunidades chinesa e africana que, respectivamente, produzem e vendem mercadorias clandestinas.Vive em uma Barcelona distante dos cartões postais e da soberba elegância dos prédios de Gaudí. Ameniza a dor de um jantar diariamente insosso fingindo servir sorvete ou cachorro quente no prato dos filhos. Uxbal é, enfim, um homem bom que dá a cara a tapa e (quase) nunca bate de volta.
Mas não bastasse todo o conflito que brota no eixo da crise familiar e social, existem dois outros elementos no personagem que o torna ainda mais complexo. Sabemos logo no começo dessa história que ele vê espíritos. Conversa com os mortos e, em troca de algumas palavras que confortem a dor de quem ficou, ganha dinheiro repassando mensagens do além. E então quando você sabe onde, como, pra quem e por que ele vive, temos a notícia de que Uxbal está morrendo. Câncer em estágio de metástase. As horas que se seguirão dentro do cinema serão, portanto, de despedidas forçadas, na conclusão de uma vida que, como todas as outras, não está pronta para esbarrar em seu ponto final.
Eleito Melhor Ator em Cannes por este papel, Javier Bardem mais uma vez se entrega de corpo e, neste caso, quase literalmente de alma. O olhar cansado, a dor física que irradia, o contato direto com quem ama ou deixou de amar, todos os movimentos do ator pertencem ao personagem, estão em Javier por empréstimo. Pode-se dizer que o talento do ator e o roteiro, assinado por Iñárritu, Armando Bo e Nicolás Giacobone, dançam em perfeita sincronia uma valsa triste, de acontecimentos que poderiam ser resumidos com aquela máxima popular: "desgraça pouca é bobagem".
Naturalmente, como grande filme que é, Biutiful termina usando esse personagem central como canalisador de angústias universais, sendo a mais compartilhada delas a morte. Mas a trama vai mais além e termina nos exibindo realidades de outro modo distantes, principalmente quando coloca Uxbal em contato direto com a comunidade de africanos que vendem produtos piratas nas ruas de Barcelona e com os chineses que fabricam esses mesmos produtos. Nelas, Uxbal desenvolve um relacionamento quase familiar, de preocupações incomuns para quem só precisa de uma comissão no fim do mês. Porque o dinheiro é sim sobrevivência, mas também é culpa. E culpa, de maneiras erradas, aproxima.
A construção dessa narrativa de vários fechamentos é executada com delicadeza e, em alguns momentos, com cenas de terror. Não o terror da música que vai subindo o som para anunciar o susto, mas o terror de viver na mais absoluta miséria, o terror da já citada culpa. E Iñárritu acerta no tom nas metáforas que usa.
Onde ele erra, porque o filme também se dá ao direito do equívoco, é quando insere em diversos momentos uma trilha sonora instrumental que se pretende perturbadora, como se o silêncio interno do personagem não fosse o suficientemente inquietante. Ou quando cola passagens com cenas fora de foco, estourando a luz da cidade noturna, em imagens que mais parecem enxertos única e exclusivamente conceituais. O filme também se torna longo e a redução de um ou outra cena não faria mal.
Isso de lado, Biutiful se ergue como um dos melhores trabalhos de Iñárritu. É um filme sem medo de ter medo. E isso é tão romântico quanto apavorante.