Em vias de gravar álbum, Boca Livre celebra quatro décadas de carreira com show na Sala Baden Powell

Por AFFONSO NUNES*, especial para o JB

Desde o Bando da Lua, passando por Tamba Trio, Demônios da Garoa, MPB4 e Quarteto em Cy, a Música Popular Brasileira tem boas referências de grupos vocais, mas nenhum deles alcançou visibilidade e popularidade como o Boca Livre. Há exatos 40 anos, o quarteto iniciava sua trajetória acompanhando Edu Lobo em concertos pelo Brasil pelo saudoso Projeto Pixinguinha. No ano seguinte, o álbum que levaria o mesmo nome do grupo, lançado de forma independente,  se tornaria sucesso com mais de 100 mil cópias vendidas. Treze álbuns depois, dois deles gravados no exterior, o Boca Livre sobe amanhã o palco da Sala Baden Powell para celebrar a sinergia construída com seu público fiel e as novas gerações de fãs. 

Era um tempo em que gravar num estúdio demandava um investimento alto, ao contrário dos dias de hoje em que um computador com os programas certos resolve tudo. “Artistas como o Antônio Adolfo já gravavam álbuns independentes, mas aquele disco abriu caminhos naquele momento. Provamos ser possível fazer sucesso fora de um esquema envolvendo as gravadoras”, diz Lourenço Baeta. “A gente terminou de gravar e concluiu que se vendêssemos 5 mil cópias, já estaria de bom tamanho para um álbum independente”, revela Maurício Maestro. “Foi um sucesso que veio muito rápido, nos surpreendeu. Em pouco tempo estávamos até em trilha sonora de novelas”, reforça Zé Renato. 

E essa popularidade atravessou o tempo, atingiu novas gerações. “Uma coisa que acontece em nossos shows mais recentes é que os fãs lá do início da carreira levam filhos e netos para conhecer as músicas que faziam a cabeça deles”, observa David Tygel que, com Maestro, participou de uma experiência musical chamada Momento 4, que pode ser considerado o embrião do Boca Livre 4. “A influência do MPB4 era notória, até no nome. Foi nosso laboratório para chegar ao que se tornou o Boca Livre, com arranjos vocais mais evoluídos”, destaca Maestro.

Trabalhar arranjos vocais é uma tarefa que exige cuidados como cuidar do quintal de frutas, flores e temperos da canção “As moças” (Juca Filho / Zé Renato). É a formação de uma equação perfeita, segundo os quatro cantores. Geometricamente, duas vezs definem um plano. Já quatro vozes definem um espaço e múltiplas dimensões e posibilidades. Mas minha maior dificuldade é fazer arranjos vocais para as canções que escrevo porque não faço música necessariamente pensando nos vocais”, explica Maestro, o único integrante que permaneceu em todas as formações do Boca Livre e geralmente assina os arranjos vocais cheios de nuances e texturas que caracterizam a discografia do grupo. “Musicalmente, a formação de quarteto é a mais perfeita da cena musical. Veja o conjunto harmônico que é um quarteto de cordas”, acrescenta Lourenço Baeta, que chegou ao Boca Livre em 1981, substituindo Claudio Nucci, saiu e retornou nos anos 1990. 

Seja nas composições próprias, seja interpretando obras de terceiros, o Boca Livre deixou marcas profundas nas canções que gravou. Como não lembrar da versão burlesca de “Panis et Circenses” (Caetano Veloso/Gilberto Gil) ou do aranjo em capela para “Ponta de areia” (Milton Nascimento e Fernando Brant). “Gostamos de tirar o melhor possível das canções com que decidimos trabalhar. E trabalhar com canções de amigos é sempre prazeroso”, observa Tygel. E como é bom ter amigos de talento, afinal o Boca Livre participou de vários trabalhos nesses 40 anos, gravando com os mais variados artistas. Caetano, Gil, Milton, Ivan Lins, Joyce, Toninho Horta, Nana Caymmi, Toquinho, Jon Anderson e Ruben Blades são alguns nomes de uma lista quase interminável.

A eterna vocação estradeira rendeu reconhecimento internacional ao grupo vocal, que fez a cabeça de artistas como Jon Anderson (vocalista do Yes), o guitarrista Pat Matheney, Rubén Blades, o multi-instrumentista e cantor contemporâneo Jacob Collier, ao ponto de arrancar críticas elogiosas do “New York Times”:  “Em 1992, estávamos nos Estados Unidos na turnê dos álbum ‘Dançando nas sombras’ que gravamos por lá e uma crítica nos chamou a atenção. Nos compararam a uma espécie de mistura de Gipsy Kings com Take 6 e que nosso álbum  era um trabalho que Crosby, Stills e Nash estavam devendo”, lembra Baeta.

As harmonias vocais, em uníssono ou no recorte de cada voz, tornam as comparações com Crosby, Stills e Nash ou sua variante em quarteto com Neil Young inevitáveis. “E podemos acrescentar a isso o uso dos violões. Crosby, Stills e Nash são uma referência para nós. Assim como foi O Terço”, lembra Baeta, referindo-se ao conjunto vocal mineiro que viria a se transformar no 14 Bis. 

No palco, o Boca Livre promete reunir canções de praticamente todos os seus álbuns de estúdio mas também novidades do próximo disco “Viola de bem querer”, ainda não gravado, tais como a faixa-título, assinada por Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro, “Vida da minha vida” (Sereno/Moacyr Luz) e “Amor de índio” (Beto Guedes/Ronaldo Bastos). “‘Minha vida’ é um samba que é um ritmo com o qual nunca mexemos muito. Foi instigante”, disse Maestro. “Ainda não gravamos o novo disco, mas o repertório e arranjos já estão 99% definidos”, conta Zé Renato, após ensaio num pequeno flat no Jardim Botânico, onde o grupo se reúne com regularidade para trabalhar. “Nosso desafio diário é cantar. Cantar mais e melhor. Atrair novos públicos. Muita coisa mudou nesses 40 anos, mas sempre haverá espaço para a música boa”, prevê Tygel.

* Jornalista

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SERVIÇO

Boca Livre - O grupo apresenta o show “Viola de bem querer” no 1º Festival de Inverno da Casa da Bossa. Sala Baden Powell (Av. N. S. Copacabana, 360 - Copacabana; Tel.: 2547-9147). Dom., às 20h. R$ 60.