Alinhamento automático do Brasil com EUA causa atritos na cúpula dos Brics
O governo Jair Bolsonaro abraçou posições dos Estados Unidos e abriu uma disputa com os demais parceiros nos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Nas negociações para formular a declaração oficial da cúpula, que acontece nesta quarta (13) e quinta-feira (14), o Itamaraty atua para convencer os membros da aliança a retirar do documento trechos que contrariam interesses norte-americanos no Oriente Médio.
Os principais pontos de atrito causados pelo alinhamento automático do Brasil aos EUA são menções a palestinos, unilateralismo e Irã.
Além disso, o Brasil quer excluir críticas dos Brics à reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC) defendida pelos EUA, que enfraqueceria o tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento.
Sob ordens do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, diplomatas brasileiros trabalham para remover da declaração oficial uma defesa da UNWRA, a agência da ONU para refugiados palestinos.
No documento da cúpula dos Brics do ano passado, em Johannesburgo, os cinco países do bloco reiteraram seu apoio à UNWRA e ressaltaram a necessidade de garantir recursos para a agência, destacando seu “papel vital no fornecimento de saúde, educação e outros serviços básicos para quase 5,3 milhões de refugiados palestinos”.
“[Nós] sublinhamos ainda a sua relevância para trazer estabilidade para a região e a necessidade de garantir um financiamento mais adequado, suficiente, previsível e sustentável para a agência”, concluíram.
Agora, o Brasil se alinhou aos EUA e se opõe a essa redação, numa ação que contraria principalmente Rússia e China.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cortou US$ 294 milhões (R$ 1,2 bilhão) em contribuição para a UNRWA, atingindo em cheio hospitais, escolas e outros serviços essenciais a refugiados palestinos.
Trump indicou que estava usando o fim da ajuda financeira para pressionar as autoridades da Palestina a participarem das negociações com israelenses patrocinadas pelos EUA.
Desde que Trump reconheceu Jerusalém como capital de Israel, em dezembro de 2017, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, cortou todos os contatos diplomáticos com Washington.
A tentativa de veto do Brasil à UNWRA também atende aos anseios de outro aliado estratégico. Citando denúncias de malversação de fundos, o governo de Israel já defendeu publicamente que a comunidade internacional corte recursos da agência.
Interlocutores que acompanham as negociações afirmam que diversos itens envolvendo o conflito palestino-israelense têm gerado tensão entre o Brasil e os demais sócios dos Brics.
Outro ponto de fricção tem relação com o Irã. Segundo pessoas que acompanham o tema, o Brasil é contra a inclusão de uma frase que defende que todos os membros das Nações Unidas “estão obrigados, de acordo com o artigo 25 da Carta da ONU, a aceitar e implementar decisões do Conselho de Segurança da ONU”.
A redação —dizem diplomatas— pode ser interpretada como uma crítica aos EUA, uma vez que o governo Trump decidiu se retirar do acordo nuclear com o Irã no ano passado.
Quando o acordo foi fechado, em 2015, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução endossando o tratado e retirou as sanções multilaterais sobre o programa nuclear iraniano.
Segundo interlocutores, o Brasil resiste a aceitar qualquer tipo de crítica ao unilateralismo, algo que tradicionalmente faz parte de documentos do tipo e esteve presente no texto da última cúpula.
Washington, assim como União Europeia e Canadá, impõe sanções econômicas unilaterais à Venezuela, medidas que não foram aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU.
Além disso, os EUA mantêm um embargo comercial contra Cuba desde o início da revolução comunista na ilha, numa medida considerada contrária à legislação internacional.
Na semana passada, pela primeira vez em 27 anos, o Brasil cedeu às pressões dos EUA e votou contra a resolução anual da ONU que condena o embargo econômico americano a Cuba. Apenas Israel e Estados Unidos votaram da mesma maneira que o Brasil.
Há ainda outros temas que colocam o Brasil e os demais membros dos Brics em posições divergentes.
O governo brasileiro abriu mão do tratamento especial e diferenciado na OMC (Organização Mundial do Comércio) a pedido dos Estados Unidos, que querem modificar o mecanismo para não oferecer vantagem injusta à China e à Índia em negociações comerciais.
Em troca, Trump anunciou apoio às ambições brasileiras de iniciar o processo de entrada na OCDE, o clube dos ricos —algo que ainda não se concretizou.
Índia e China queriam incluir na declaração dos Brics uma crítica às mudanças no mecanismo defendidas pelos EUA, mas o Brasil resiste a incluir a posição.
Outro ponto em que não havia consenso, mas, desta vez, não por causa do posicionamento brasileiro, é a ampliação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o Banco dos Brics.
Os líderes do bloco queriam anunciar oficialmente durante a cúpula o início da ampliação do banco, que passaria gradualmente dos atuais cinco sócios para 20, sendo três de cada região dos Brics.
Mas a Rússia quer que haja uma análise política dos possíveis sócios, feita pelos presidentes dos Brics, e não tem pressa para a expansão.
Outros pontos de divergência —Venezuela e a recente crise na Bolívia— muito provavelmente não farão parte da declaração, também por falta de consenso.
O Brasil está isolado ao reconhecer Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, enquanto todos os outros países reconhecem como legítimo o regime do ditador Nicolás Maduro.
Em relação à Bolívia, o Brasil não considera que a renúncia de Evo Morales tenha sido provocada por um golpe de Estado, ao contrário do governo russo. A China também é aliada próxima do governo Evo.
De qualquer maneira, dizem interlocutores, temas como esse não entrariam normalmente na declaração dos Brics.(Patrícia Campos Mello e Ricardo Della Coletta/FolhaPress SNG)