Uma infiltração começa com uma simples gota d´água. Ela pinga constantemente na superfície até que se forma uma pequena mancha úmida. Essa mancha, se não cuidada, começa a danificar a superfície onde a simples gota cai. Para uma infiltração não existe solução de contorno. Trocar somente a superfície por uma outra não vai impedir que a gota caia constantemente. E a mancha volta. Se o problema não for resolvido, esta infiltração pode até danificar a estrutura da casa e tudo desmoronar. Infelizmente, no basquete nacional a gota continua pingando.
Isso porque na última quinta-feira, 29 de junho, veio a público o comunicado da Confederação Brasileira de Basquete (CBB), enviado para as Federações, comissões de atletas e arbitragem ratificando o fim da chancela à LNB para a temporada 2023/24. Claro que um documento com essa magnitude, pelo seu grande interesse, iria eventualmente aparecer para o público. Porém, o conteúdo não possui nada de novo nesta questão da chancela. Vamos voltar um pouco para tentar explicar o que é afinal a chancela que a Confederação Brasileira de Basquete concede à Liga Nacional de Basquete para a disputa do NBB.
Em 2008, os representantes da então recém-formada Liga Nacional de Basquete negociaram com os dirigentes à época da Confederação Brasileira de Basquete, comandada pelo finado Grego, a concessão de uma chancela para organização do campeonato masculino adulto que eventualmente virou o NBB, a “segunda divisão” – Liga Ouro, e por último a Liga de Desenvolvimento (LDB). Essa chancela tem grande importância esportivamente porque somente com ela os times do NBB podem disputar competições internacionais da Fiba Américas, e os atletas do NBB teriam acesso ao sistema Fiba para eventuais transferências. O documento original tinha validade de 100 (cem) anos. Isso mesmo. Um século. O que cabia à CBB? O tribunal esportivo, a cessão de árbitros e cuidar da seleção Brasileira.
O cenário mudaria um pouco em 2017, quando Guy Peixoto assumiu a Confederação. O novo mandatário não poderia ter encontrado um cenário mais de terra arrasada. Ao “abrir a porta” da sede da confederação, o atual presidente encontrou dívidas, problemas para captação de recursos via lei de incentivo, e uma seleção Brasileira que vinha de uma dura derrota nas Olimpíadas do Rio em 2016. O que funcionava, e basicamente funciona, no basquete nacional? O NBB. Se tinha uma chance de manter o basquete nacional relevante, era com o NBB. Por quê? Porque os jogadores que iriam servir à Seleção para a próxima década eram os jogadores do NBB. O que acabou acontecendo. Nomes como Lucas Dias, Georginho, Yago e Bruno Caboclo são frutos de campeonatos como a LDB e o NBB. A fórmula é simples: com uma seleção forte, mais chance de captar receitas no mercado.
Em um primeiro momento, tudo ficou como estava. A coisa começou a mudar de figura em 2018. A CBB informa que na verdade a chancela se tornaria uma portaria e que nesta portaria ficaria definido que a Liga Ouro, segunda divisão do NBB, se encerraria em 2019 e este campeonato passaria a ser organizado pela CBB. Com uma concessão: quem vencesse e atendesse os critérios da LNB disputaria o NBB.
Tivemos duas edições do Campeonato Brasileiro e a vida seguiu. O momento “Franz Ferdinand” aconteceu na temporada 2021/22. O São José venceu o Campeonato Brasileiro da CBB, enquanto o Paulistano foi o sétimo colocado no NBB da época. Pela regra antiga, o Paulistano deveria pegar a vaga para a Sul-Americana. Porém, no acordo novo, a CBB deveria apontar uma destas vagas. O São José informou à CBB que não disputaria. Assim, a Confederação indicou a Liga Sorocabana, 2ª colocada daquele campeonato Brasileiro, para o lugar. A Liga Nacional entrou com uma liminar contra a CBB e a Liga Sorocabana para tentar manter o Paulistano como indicação. Depois de uma briga judicial, a Sorocabana participou daquela edição da Copa Sul-Americana.
O que essa “Guerra Fria” precisava para o seu estopim era uma cisão. E ela chegou com a crise de setembro de 2022. Enquanto a seleção brasileira disputava sua primeira competição internacional desde as Olimpíadas em Recife, na AmeriCup, os bastidores do basquete nacional entravam em ebulição. Se em quadra o técnico e jogadores eram crias do NBB, fora dela a incerteza cercava o NBB 2022/23.
Até o dia 17 de outubro de 2022. Em uma portaria publicada nesta data pela Confederação Brasileira de Basquete, o presidente Guy Peixoto assina o documento que abre com o seguinte: “Art. 1º – A CBB chancela o campeonato brasileiro de clubes de basquetebol adulto masculino, denominado Novo Basquete Brasil – NBB da temporada 2022/2023, promovido e organizado pela LNB, segundo as normas estabelecidas pela FIBA e CBB.”. A portaria, na íntegra, está aqui. Ou seja, teremos mais um ano de NBB e pronto. De acordo com o documento, quando o cronometro zera no Pedrocão para Franca e São Paulo, acaba assim a chancela da CBB.
E, finalmente, voltamos para julho de 2023. O documento recebido na semana passada por entidades ligadas ao basquete, reforço, não traz nada de novo em relação à situação de 2022. Nem uma linha diferente. Nada de novo neste “front”.
Como o “barulho” nas redes foi alto, e com razão, a Liga Nacional lançou uma nota oficial ratificando que teremos, sim, a edição de número 16 do NBB e que “Os clubes que formam a Liga Nacional de Basquete reiteram seu compromisso com o fomento e o desenvolvimento da modalidade no Brasil.”. Clubes estes que têm mostrado comprometimento com a próxima temporada com movimentações bem interessantes no mercado. Não faz sentido o Flamengo trazer um jogador como o Didi, ex-Franca e New Orleans Pelicans, para não disputar torneios internacionais em 24/25. Cabe aqui uma observação. A nota da Liga Nacional corrobora que teremos o NBB e está aberta ao diálogo com a CBB, porém, a CBB só está cumprindo os ritos determinados há um ano, quando a portaria de 17 de outubro foi publicada. Não podiam ter conversado antes para não deixar o assunto chegar neste ponto? Mais uma questão: A nota da Liga reiterando que teremos NBB 16 não poderia ter saído no último dia do NBB? Que não seja uma nota. Que seja uma simples hashtag para que os clubes incluam nas suas redes, algo do tipo #nosvemosnonbb16?
Caso o cenário de suspensão da chancela se confirme o que irá acontecer:
1. BCLA, Sul-Americana e Intercontinental – Para a próxima temporada, nenhuma mudança. Os times foram definidos pelas suas posições nas edições 2022/23 do NBB, Super 8 e Campeonato Brasileiro, Assim Franca, Minas e São Paulo disputam a BCLA e o Flamengo e o Cruzeiro disputam a Sul-Americana. Caso um dos dois vença a competição, o time consegue uma vaga para a BCLA. Franca continua confirmada para disputar o Intercontinental em 2024;
2. NBB 2023/2024 – A competição pode ocorrer normalmente com todos os seus produtos (Temporada Regular, Super 8, Jogo das Estrelas, Playoffs e Finais). Porém, não haveria vagas em competições FIBA.
3. Seleção Brasileira – Sem acordo com a Fiba e CBB, a coisa pode ficar bem complicada para a Seleção. E isso em ano de Olimpíada...
Entramos em contato com o Departamento de Comunicação da Liga Nacional de Basquete e da Confederação Brasileira para ouvir os dois lados. Em nota enviada ao JORNAL DO BRASIL, o Departamento de Comunicação da Liga comentou que “Apesar de não ser um ato saudável para o ambiente institucional do esporte, cabe esclarecer que a ausência da chancela da Confederação Brasileira de Basketball não é condição para a existência e funcionamento da Liga Nacional de Basquete, da mesma forma que não é condicionante para a realização das competições organizadas pela Liga, o que segue acontecendo normalmente. É importante reafirmar que a Liga Nacional de Basquete mantém sua posição de manutenção do diálogo a fim de encontrar uma solução conciliatória para o caso, o que entende ser o melhor para o contínuo crescimento do nosso esporte.”
Procurada, por e-mail, a CBB informou que irá comunicar em breve sobre o Campeonato Brasileiro.
Este texto já está com mais de 1100 palavras até este parágrafo, e parece que não tem fim. Enquanto brigamos internamente, a NBA dá aula de como esconder suas mazelas. Para cada escândalo do tipo “suspende/não-suspende/suspende Ja Morant” tem sempre uma entrevista especial de um Lebron James da vida. Suspeitas de que quem negociou a ida de Bradley Beal para o Suns foi um acordo de pai (agente de Beal) e filho (CEO do Suns); tem uma enxurrada de especulações para onde vai Damien Lillard. Uma aula de “nada nesta mão, nada nesta aqui”.
A gota que pinga no basquete nacional já virou uma infiltração e está carcomendo as estruturas que mantêm este país como produtor de talentos. Assim como em uma obra, vai dar trabalho descobrir o cano ou a telha que faz aquela pequena gota pingar. Vai ter que quebrar o teto, mudar o cano e verificar os registros de água. Mas pelo bem do que sobrou do combalido basquete nacional, precisamos resolver os problemas que se arrastam há décadas. Não resolver nos leva a situações como as de hoje. Não faltam lições na história. Nos anos 2000, os anos pré-NBB, tivemos duas Ligas ao mesmo tempo, campeonatos que acabavam nos tribunais (isso quando acabavam) e a maior vergonha de todas: a suspensão da CBB pouco tempo antes da Olimpíada do Rio.
Caso a gota tenha sucesso e efetivamente acabe com a estrutura do Basquete Nacional, vocês sabem com quem vai ficar esse espólio, não é? Ora, a NBA. E vai receber o público brasileiro de braços abertos. Desculpem. Já recebeu. Enquanto brigamos entre nós, a mentalidade do brasileiro em relação ao basquete mudou. Puxo aqui o exemplo de quando Nenê Hilário pediu dispensa da seleção. Teve matéria com ex-jogadores, torcedor xingando o cara quando ele veio anos depois para jogar pelo Wizards, e especial no Esporte Espetacular. Hoje, se um Bruno Caboclo (nota: o nome do Caboclo foi utilizado a título de exemplo), um dos nossos melhores jogadores, pedir dispensa da Seleção para disputar uma vaga em uma Summer League ou Pré-temporada da NBA, o público vai aplaudir.
O Brasil tem títulos, ídolos, lastro e uma imagem no basquete mundial. Pelo jeito que estamos caminhando, existe, sim, o perigo de nos tornarmos um mero mercado consumidor de basquete. Ainda dá para reverter essa onda. Vai ser mais difícil, ainda mais com a “sombra” da NBA, mas ainda acreditamos que as forças que regem a modalidade eventualmente chegarão a um acordo.
Aguardemos cenas dos próximos capítulos...