Haiti: a miséria sem lágrimas de Tsinesse
Joana Duarte , Jornal do Brasil
PORTO PRÍNCIPE - Mal raiou o dia e Madame Tsinesse (sobrenomes não são considerados importantes onde não existem registros de nascimento) já começa a descascar batata e inhame para a sopa que vai vender em frente ao seu barraco, no bairro pobre de Cité Militaire, em Porto Príncipe, Haiti. Diz ela que cobra US$ 10 por prato, mas para o capitão Renato Oliveira, do Grupamento Operativo de Fuzileiros Navais da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah), este é o preço para nós, os estrangeiros. Haitianos pagam em gourde, a moeda local, ou fazem escambo com o que tiverem para oferecer.
Casada há 15 anos e mãe de quatro filhos, Madame Tsinesse não parece incomodada com as luzes das câmeras e os flashes que ofuscam sua visão, numa rara madrugada em que os militares brasileiros permitiram o acompanhamento de jornalistas na patrulha diária em torno do bairro, uma das maiores e mais perigosas favelas da capital haitiana.
Brasileiros são boa gente elogia Madame, abrindo um sorriso para o capitão Renato, antes de fixar os olhos no inhame que descascava, planta rústica que dispensa tratos sofisticados e costuma sobreviver às intempéries da natureza. Está difícil achar comida por aqui diz.
Assim como a grande maioria de haitianos em Porto Príncipe, ela perdeu familiares no terremoto de janeiro, mas prefere não falar sobre isso, mais de um mês e meio depois da tragédia. Como a maioria que circula pelas ruas da capital, suas lágrimas já secaram. É hora de pensar no futuro.
A força-tarefa brasileira no Haiti têm três postos de patrulhamento, conhecidos como pontos fortes, distribuídos estrategicamente nas áreas mais arriscadas e perigosas da cidade. Batizada de Fábrica de Gelo, por funcionar em um antigo depósito, uma destas bases brasileiras fica bem em frente à casa de Madame Tsinesse.
Mapa
Antes da chegada dos brasileiros não havia um mapa do bairro, uma das poucas favelas construídas em um dos morros de Porto Príncipe onde os ricos costumam morar. O mapeamento meticuloso da região foi feito a duras penas pelos fuzileiros durante as patrulhas noturnas. Hoje, todas as ruelas do labirinto, que remete às favelas do Rio, foram mapeadas, permitindo a criação de uma planta detalhada da cidade.
Segundo o capitão-tenente da Marinha Rafael Machard, enfrentamentos com os habitantes do bairro não são frequentes, e geralmente só ocorrem quando os militares esbarram em alguns dos cerca de 4 mil criminosos que aproveitaram o terremoto para fugir da maior penitenciária da capital.
Às vezes tem reunião de bandidos na cidade explica Machard, acrescentando, entretanto, que a atuação dos fugitivos não é ostensiva. Desde o terremoto, já prendemos três desses fugitivos e os entregamos à policia nacional haitiana, já que a Minustah não tem poder de polícia.
Os fuzileiros navais aproveitam as patrulhas para fazer as chamadas operações Papai Noel, criadas pela Marinha para a entrega de ajuda humanitária de maneira isolada, sem causar tumultos, explica o sargento Marcio José Silva. Na operação, casas mais remotas são identificadas durante a patrulha e, em seguida, sacos de comida são deixados dentro do portão destas casas, enquanto os moradores e seus vizinhos ainda dormem, alheios à presença militar no bairro.
Apelidadas de piranhas , as viaturas utilizadas pelos fuzileiros nessas operações mais parecem tanques de guerra, e são capazes de suportar balas de calibre 62. Importadas da Suíça, as piranhas transportam 13 militares 11 no interior da viatura e dois na guarnição.
Apesar da aparente tranquilidade em Cité Militaire, todo militar brasileiro que participa das patrulhas carrega um fuzil M-16 e quatro carregadores, pistola 9 milímetros, equipamento de rádio, colete e capacete à prova de balas, além de um armamento não letal geralmente spray de pimenta ou espingarda com balas de borracha.
Luta pela dignidade em meio à degradação
Cité Soleil já foi considerado um dos lugares mais perigosos do mundo. Hoje, a segurança na região está sob a responsabilidade dos militares brasileiros que integram a Minustah. Patrulhas noturnas são realizadas ali, particularmente no bairro de Cité Gerard, onde a degradação generalizada ultrapassa qualquer patamar conhecido no Brasil.
Grande parte da população do bairro dorme no chão, em frente aos seus barracos, por causa do calor ou pelo temor de novos abalos sísmicos. É na rua também que tomam banho com a água disponível dos esgotos, a mesma que utilizam para cozinhar suas refeições. O cheiro de queimado, característico da capital, devido às lamparinas comumente usadas para fornecer a luz que o Estado não oferece, se mistura com o odor pútrido e pungente do esgoto a céu aberto.
Depois do terremoto, o que antes se fazia em casa, agora se faz nas ruas: não há mais vida privada nas favelas de Porto Príncipe. Quando os moradores não fazem suas necessidades fisiológicas ao ar livre, depositam os excrementos em bandejas e, em seguida, os lançam para fora dos barracos.
As crianças, que ficarão sem aulas até pelo menos o mês de junho, soltam pipas para se distrair ou fazem carrinhos improvisados com caixas de leite. Já os adultos jogam bola de gude, dominó e baralho.
Biscoitos de barro
Antes mesmo do terremoto, já era comum ver crianças e mulheres grávidas comendo os tradicionais biscoitos feitos de barro, óleo, sal e água nas comunidades. Hoje, a escassez generalizada de alimentos transformou o biscoito em um dos poucos alimentos acessíveis a grande parte da população que vive nas favelas de Cité Soleil.
O biscoito tem gosto de chocolate amargo, mas salgado revela o capitão Rodrigo Ferreira da Silva, comandante do ponto forte de Cité Gerard, que provou um pedaço para descobrir o gosto .
Apesar da miséria extrema, o povo haitiano não dispensa cuidados meticulosos com a aparência, e até mesmo nas favelas mais pobres da capital, a dignidade dos haitianos resiste em meio a tanta degradação. É raro ver alguém sem camisa ou com as roupas sujas nas ruas. As crianças, principalmente, estão sempre muito limpas, penteadas e bem vestidas. Especialmente nos domingos, dia de missa, contam os militares brasileiros.