‘Ricky’ põe a família no divã

François Ozon usa conto fantástico sobre bebê que sabe voar para investigar, mais uma vez, os desequilíbrios do núcleo familiar

Por Carlos Helí de Almeida

Quando um amigo sugeriu que o conto Moth (mariposa), da escritora Rose Tremain, pudesse render um filme, François Ozon até viu potencial na história mas, de imediato, achou que não era material para ele. O texto da escritora inglesa descreve o impacto da chegada de um bebê com asas no seio de uma família (americana, no original) pobre. 

– O título me encantou, a história tinha um certo humor e muita fantasia, mas não tinha a menor ideia de como filmá-la, porque não era o meu universo. Talvez fosse mais indicada para os estúdios Disney, ou mesmo para os irmãos Dardenne, porque nunca havia trabalhado com a classe operária – lembra o diretor francês em entrevista ao JB, durante o Festival de Berlim. – Levei um ou dois anos para perceber que o mais importante, para mim, não era o bebê voador, mas a situação extraordinária dessa família e como poderia explorar o desequilíbrio causado por um novo membro nela.

Ao mudar a perspectiva do conto de Rose Tremain, François Ozon o trouxe para dentro de um campo temático que lhe é bastante familiar: a relação entre pais e filhos, em geral, e as tensões naturais de núcleo familiar, em particular. Aqui, o autor de Sitcom – Nossa linda família (1998), comédia agridoce sobre filhos que afrontam os pais burgueses com seus desvios de comportamento, usa um ser fantástico para realçar as reações daqueles ligados a ele.

–  Dizem que a família é o lugar do amor e da compreensão, mas também há espaço para o ódio e a violência. A questão é não deixar que estes aspectos negativos interfiram na harmonia do lar – entende o realizador de 43 anos. – A entrada em cena de outro membro obriga todos da casa a encontrarem nela seu novo lugar, e a dificuldade desta tarefa está ligada ao tipo de equilíbrio que se tem dentro dela.

Em Ricky, equilíbrio e harmonia são artigos raros no pequeno lar administrado por Katie (Alexandra Lamy), operária de uma fábrica que divide seu tempo entre o trabalho estafante e os cuidados com a filha pequena, Lisa (Méluse  Mayance), de 6 anos. Desde o início, a menina se sente neglicenciada pela atarefada mãe, sentimento que se intensifica com o surgimento de Paco (o espanhol Sergi Lopez), o colega de uniforme com Katie quem inicia um sôfrego romance, e a chegada do pequeno Ricky, resultado desta relação.

O registro realista passa a inclinar-se na direção do surreal quando o bebê começa a desenvolver pequenas asas no lugar onde havia suspeitas manchas roxas – motivo, aliás, de uma breve separação do casal. O espanto de Katie, Lisa e Paco diante da aparente deformação física de Ricky logo se transforma em motivo de preocupação quando o pequeno começa a voar para o topo de armários e até para  fora de casa. Problema até então doméstico, o dom de Ricky ameaça virar atração de uma sociedade cada vez mais voltada para o espetáculo. Entra em jogo a natureza do amor de mãe por um filho fora do comum, que também pode render frutos financeiros.

– A maternidade é muito idealizada em nossa sociedade. Ela é mais complexa do que lugar-comum do amor incondicional da mãe pelo filho. Recentemente, na França, foram noticiados muitos casos de mães que mataram seus bebês, por diversos motivos – argumentou o diretor.  

O maior encanto deste cruzamento entre o realismo social de Rosetta (1999), dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, e O bebê de Rosemary (1968), de Roman Polansky – referências que Ozon admite ter tido na cabeça durante as filmagens – é o pequeno Arthur Peyret, “intérprete” do pequeno e angelical Ricky.  O processo de seleção do bebê  também incluiu a aprovação do temperamento da mãe.

– Gostei de vários bebês mas, quando a gente os tocava, as mães gritavam de preocupação. Era impossível trabalhar assim – contou. – A mãe de Arthur é aeromoça, não implicava muito com a situação. E trabalhar com ele foi fácil, foi uma questão de adaptar os horários de filmagens ao ritmo dele.