Aventura religiosa
O romano Andrea Frediani, best-seller na Itália por seus romances medievais, expõe , em ‘Jerusalém’, o choque entre as religiões cristã e muçulmana a partir da visão de duas irmãs judias, uma prostituta, um monge, um eremita, um bizantino, um turco e
Andrea Frediani, em seu romance Jerusalém, narra a primeira cruzada empreendida pela cristandade empenhada em recuperar a Terra Santa em poder dos árabes. O ano é 1093. Aproveitando todos os recursos disponíveis do romance, o autor coloca lado a lado personagens históricos e fictícios. O resultado é bastante positivo. Também é boa a sua pesquisa sobre a geopolítica do início do segundo milênio, quando a Europa ainda engatinhava num precário equilíbrio, situação tanto mais conturbada quanto mais se voltava para o Oriente, sobretudo considerando-se as derrotas infligidas pelos turcos ao Império Bizantino.
Para tornar a história ainda mais apimentada, Frediani nos fala de um antigo manuscrito que sobreviveu a todas as intempéries vividas pelo povo judeu. O texto, passado de geração a geração, teria sido um diário escrito por Tiago, suposto irmão de Jesus Cristo e o herdeiro da Igreja primitiva após o martírio. No romance, há interesse do papa em recuperar o documento – há notícias de que ele se encontra dentro da cidade sagrada, Jerusalém – pois revelaria verdades incômodas ao cristianismo, como sobre quem foram os verdadeiros responsáveis pela condenação e morte de Cristo. O manuscrito assinalaria ainda que o Cristo tal qual o conhecemos foi uma vitória das concepções religiosas de São Paulo, que atenuou em Jesus suas características mais judaicas, universalizando seu pensamento e levando-o para o mundo helênico. Mas, é lógico, esse manuscrito nada mais é do que um artifício literário.
O romance, ao mesmo tempo em que narra a preparação e execução da Cruzada, relata os pormenores dos conflitos de interesses entre os reinos do velho continente, a Igreja e as ambições da então nobreza que se dispunha a participar do evento. A mola mestra da mobilização é a possibilidade de maior enriquecimento proporcionado pelos possíveis tesouros que Jerusalém abriga. Os comandantes prometem a seus soldados maior parte no butim a partir do momento em que eles consigam vencer as muralhas da cidade sagrada. O objetivo religioso da Cruzada, na verdade, era uma questão menor.
Outro assunto bastante pertinente à época de hoje é o caráter tolerante da cultura árabe, sempre diminuída e negligenciada pelo Ocidente mas, aqui, valorizada pelo autor através da figura de um emir, Jamal. Utilizando argumentos sensatos, ele consegue explanar sobre a beleza e sabedoria existentes no Alcorão, um livro que, ainda segundo ele, incita à paz e à tolerância, mesmo num momento de guerra.
Os judeus, sempre perseguidos e dizimados, ocupam boa parte da narrativa, tendo na sua sombra a pseudotolerância da Igreja Católica, que nunca deixou de culpá-los pela morte de Cristo. Mas o livro tenta recuperar outra realidade.
Duas irmãs, Sara e Rebeca, protagonizam esta aventura, sendo a segunda extremamente culta e capaz de sustentar acalorados debates tanto com os padres, com os árabes ou mesmo com os próprios rabinos. Ao mesmo tempo, ela acaba tornando-se uma das guardiãs do manuscrito de Tiago, que lhe chega às mãos através de um peregrino que vai à Mogúncia à procura de seu pai, um rabino na região do Reno. Após a morte deste, num extermínio executado por cristãos a caminho do Oriente, ela e a irmã são salvas por um cavaleiro até então desconhecido, fugindo a seguir para a Palestina e se estabelecendo no bairro judeu de Jerusalém. Na ocasião, a cidade, sob domínio muçulmano, está quase com os cruzados às suas portas.
O romance é dividido em quatro partes denominadas: Caminho, Assalto, Assédio e Conquista. O autor, especialista em história medieval, soube transformar o assunto em uma bela narrativa, que segue o esquema de romance de aventura. Os protagonistas são os personagens que, na verdade, não exercem papel determinante na trama, mas suas condutas revelam uma ordem de valores que não frequentava a mesa da dominação vigente, tanto a exercida pela Igreja como a dos reinos europeus. Embora a história seja escrita pelos vencedores, aqueles que não fizeram parte deste grupo contribuíram para mostrar que a verdade quase nunca está do lado do vencedor.
Um episódio interessante ocorre quando um dos árabes negligencia o poder dos cruzados após a primeira tentativa de assalto, que se tornou frustrada. Jamal, que caíra antes como prisioneiro dos cristãos e fugira diz: “O que os torna perigosos é que eles nada têm a perder nem têm para onde voltar”. Tal passagem denuncia as cruzadas como movimentos de mobilização que puderam levar para longe os problemas que muitos reinos e a própria Igreja tinham nos seus calcanhares.
No final do livro, apesar dessa primeira vitória da cristandade, que recuperou Jerusalém ainda que por poucos anos, fica a impressão de que a lama que respingou na Igreja Católica por causa do massacre no momento da conquista jamais desapareceu. Por outro lado, veem-se com certa simpatia os povos árabe e judeu, que na narrativa cooperam um com o outro e sofrem juntos as investidas da Europa cristã.
Haron Gamal é professor e doutor em literatura brasileira pela UFRJ.
Jerusalém, de Andrea Frediani. Editora Bertrand Brasil. 574 páginas. R$ 55.