Mauro Santayana | Sem pauta

Por Mauro Santayana

A vida barata

As águas que, vindas do oeste, caíam no São Francisco, eram amplas, embora mansas. Isso nos deu a ideia de serem barra de rio grosso. Como nada nos impedia de subir tais águas, decidimos. Havia provisão de paçoca, além da carne de sol de reserva, embrulhada em folhas secas de bananeira e, para a friagem, duas cabaças da boa cachaça de Januária, amarradas na proa do barco e mantidas abaixo da linha da água, para não esquentar. O motor de popa roncava sem escândalo.

Quem não tem nada a fazer, inventa. Tivéramos sorte, trabalhando para o velho fazendeiro. A gente não sabia da fama do lugar. Só soubemos dois dias depois do acontecido, quando encontramos em Maria da Cruz um vaqueirinho de Lassance, que trabalhara ali bem antes. “De todos os que foram para lá, acho que não escapou um só, a não ser nós” – contou. “Era assim, o sujeito chegava, ia para o barraco, trabalhava algum tempo e, depois, sumia”. Quando alguém perguntava pelo desaparecido, a resposta do velho era uma só: “Pediu conta. Eu dei. Ninguém trabalha aqui contra a vontade”. O vaqueirinho de Lassance disse que achara esquisito, como é que um sujeito desaparece assim, ainda de noite, sem se despedir nem nada. O velho respondeu resmungando, que o vaqueirinho fosse atrás dele, e perguntasse. Eram, naquele tempinho, ele, de Lassance, e mais dois, vindos dos lados de Goiás. “Achei que era melhor ir embora, sem pedir conta, nem me despedir”.

A mulher do velho fazendeiro era caduca, e passava o tempo inteiro no quarto. A irmã dela, muito mais nova, tomava conta da casa. Nós três chegamos à fazenda levando dois jumentos amansados pra vender. O velho regateou e, chegando no preço, comprou. E ofereceu serviço: seus dois vaqueiros haviam viajado naquele dia mesmo, irmãos que eram, para enterrar o pai. A gente acreditou, por que não? O serviço era de dias, até os vaqueiros voltarem. E foi aí que o Mundão, para diferenciar do outro Raimundo, o Mundinho, desconfiou da cunhada do velho, que chegou nele, com uma conversa esquisita. Mundão deu trela: era para pegar um dinheiro que o velho tinha escondido, para os dois sumirem no mundo. A sorte de Mundão foi a de não querer tudo para ele. Muitos anos depois de morto o velho, e passando por Januária, acabei sabendo das coisas. Quando o infeliz, conversado pela mulher, ia remexer em uma bruaca, no escondido do curral, para pegar a dinheirama, o velho chegava por detrás e sangrava o coitado. Era só por prazer, mas, de vez em quando, ficava com alguma coisa do morto: relógios, garruchas, canivetes, porque, mais do que isso, vaqueiro não carrega.

Mundão aceitou a proposta, Mundinho e eu fomos atrás. A gente não esperava o velho, e achava que a mulher queria só a outra coisa com o Mundão. Foi aí que desarmamos o velho, e o amarramos em um esteio do curral. Começamos a discutir como acabar com eles: na faca, no tiro ou queimando a fazenda. A mulher então ofereceu todo o dinheiro, que não estava ali, mas dentro da casa. Insisti, aí já de maldade, que a gente devia queimar os dois e mais a velha caduca dentro da fazenda. Mundinho alegou que o dinheiro era justa indenização pela tentativa de morte de Mundão. Recebemos o dinheiro e amarramos a mulher em outro esteio. 

O dinheiro que sobrara da compra do bote era ainda muito. Naqueles lados, a vida é barata. As águas minguaram depressa, o córrego não dava calado para o bote, voltamos para o rio verdadeiro. Mundinho, o mais sabido de nós, ajuizou que boca larga de rio não quer dizer boca de rio comprido, e todo dinheiro fácil é dinheiro maldiçoado, era bom que a gente gastasse logo. No nosso correr mundo, descemos o Chico, entramos no Carinhanha, andamos pela Bahia e, já a pé, a gente se separou na beira do Tocantins.