Mauro Santayana: Coisas da Política

Por Mauro Santayana

Linguagem e soberania 

A civilização se define como a reunião dos homens em cidades, construídas a fim de os proteger das intempéries e tornar a vida mais amena. A troca de experiências levou-os a aspirações ainda maiores, ao êxtase diante da beleza das cores e dos sons, ao surgimento da arte. Recentemente se descobriu o que os arqueólogos consideraram o primeiro instrumento musical:  flauta feita a partir do osso de um abutre, e datada, conforme os estudos, de há 35 mil anos. 

O homem chegou ao momento mais alto de sua razão na chamada idade axial, que, conforme Karl Jaspers, ocorreu entre o século 8, antes de Cristo e o século 2, de nossa era. O desenvolvimento da inteligência e dos sentimentos de transcendência, naquele milênio, na China, na Índia e no Mediterrâneo, praticamente esgotou o potencial da mente humana. O que marcou o período foi o aprimoramento da linguagem escrita, que transmitiu ao futuro a experiência do passado e incitou o desenvolvimento das ideias. A partir daí, o processo tem sido o polimento de um poliedro translúcido. Sua essência, volume e  forma não se alteraram. É como se fosse um depósito de luz,  espécie de prisma, que reflete o todo cósmico, para orientar a construção permanente do homem.

A linguagem evoluiu dos primeiros grunhidos, que expressavam o medo, o pedido de socorro, a conquista da fêmea ou do macho, o êxtase diante da beleza de um pássaro, ou a tristeza do luto, até os cantos de Homero, os dramas gregos, as novelas de Cervantes e os poemas de Shakespeare. A civilização é, assim, o processo da evolução da linguagem. Sem a inteligência comum dos grupos, a que chamamos cultura, os sentimentos humanos minguariam, cedendo lugar aos instintivos grunhidos dos hominídeos. Demolir a linguagem é demolir o homem. Quando se trata de política de Estado, é crime contra o povo.

Não surpreende que o Ministério da Educação aceite a iniciativa de professores de português em  destruir a bela língua que surgiu no norte da Península Ibérica, a partir do dialeto galego, e cuja expressão literária se deve a prosadores como Fernão Lopes. Além de essa agressão vir desde o governo de Fernando Henrique, ela é coerente com o estiolamento do processo civilizatório, a que estamos assistindo nesta passagem de milênio. Significa a completa falência do estado contemporâneo, aqui e alhures. Muitos dos professores que advogam a anarquia da linguagem – felizmente, não todos – ao estimular a redução das frases a meras aproximações da mensagem, fazem-no, provavelmente, em causa própria. Não conhecendo os mecanismos da sintaxe, da semântica, da morfologia, são incapazes de ensinar. Os pais e avós se espantam com os grosseiros erros de linguagem cometidos por certos mestres. 

A língua não é exata. Toda linguagem, dizem os especialistas, é imperfeita. Os idiomas se sujeitam às mudanças da sociedade, mas, dialeticamente, ao enriquecerem, enriquecem seus usuários, e, ao empobrecerem, corroem a cultura e a ética das nações. Essa erosão contribui para o embrutecimento assustador do homem, que se manifesta no envenenamento de moradores de rua nas grandes cidades brasileiras  e no pandemônio psíquico de pessoas, como o matador de crianças no Realengo. E se expressa também no terrorismo de Estado. 

Quando “especialistas” em educação expõem as teorias mais confusas e pedantemente elaboradas, prenhes de termos técnicos e vazias de significado,  cabe ao Estado determinar o retorno às cartilhas de há 60 anos, para o aprendizado da Língua Pátria, em toda a sua riqueza, e à tabuada, base da razão matemática. Só a velha escola pode trazer homens novos ao mundo, capazes de entender o tempo e salvar a espécie da destruição que a ameaça.      

Textos como os de Contos pátrios, escritos por bons escritores (como Olavo Bilac e Coelho Neto) deveriam ser adotados. A língua é o fundamento da soberania.